Dispositivos de saúde são avanços, mas trazem riscos inerentes
Que as coisas comuns estão cada vez mais ligadas à internet, já é bem conhecido. Há, entretanto, diferenças importantes entre o nosso televisor receber e transmitir dados via internet, e nosso marca-passo cardíaco estar conectado.
Se a preocupação mais imediata é a proteção de dados pessoais, indiscrições que o televisor cometa podem levar ao mapeamento dos gostos de seu dono: que programas prefere, se troca de canal entre comerciais ou a eles presta atenção, etc. Com a TV interativa isso será potencializado: o antes mero espectador e piloto do controle remoto passa, via “setup box”, a navegar na rede e a fazer pedidos. É um simples adicionar ao que já se sabia dele, que coisas ele busca, que plataformas visita e que interações mais atraem seu interesse.
Na outra categoria de equipamentos, as que integram o ciborgue em que estamos nos transformando, a coisa pode ser bem mais complicada. Há uns meses li um artigo que descrevia um caso interessante, de 2016. Um indivíduo que perdera a casa num incêndio relatou como, a duras penas, quebrou a vidraça com sua bengala e saiu carregando o que pode, incluindo-se aí o carregador de seu equipamento de suporte cardíaco instalado em seu corpo. Ele solicitou o resgate do seguro de seu imóvel… A priori um drama pessoal em que ele, ainda mais por sua frágil condição de saúde, escapara com vida.
A empresa de seguros, ao investigar o caso, desconfiou da origem do incêndio e da complicada história de como o homem lograra escapar. E como havia um equipamento permanentemente instalado em seu corpo, a empresa pediu acesso aos dados gerados pelo equipamento, esperando que eles revelassem outra versão. Haveria registrada no equipamento, por exemplo, uma excitação proporcional à que seria de esperar naquelas condições? Seguiu-se uma guerra jurídica que não chegou à conclusão porque o demandante faleceu antes.
O que se tira disso é, por si, bastante preocupante. Equipamentos que passam a integrar nosso “organismo expandido” – e mesmo os chamados “vestíveis”– são fonte de informações muito íntimas. Uma vez acessíveis pela rede, esses dados poderão ser garimpados por alguém. Imagine-se um invasor conseguindo acesso a um marca-passo ou a uma bomba de insulina e passando a cobrar resgate para não interferir no funcionamento desses equipamentos! Pesadelos não faltarão…
O cenário hoje é bem mais complexo que o de 2016. Se, por um lado, as coisas se tornaram cada vez mais conectadas – e com elas também nossos corpos –, por outro temos o apoio de leis que protegem nossos dados pessoais. A lei, porém, pune mas não impede. Afinal, mesmo com a lei definindo crime a invasão de um equipamento vital, como agiremos se o invasor, no controle da situação, exigir resgate?
Sim, as nossas informações vitais devem estar disponíveis, mas sempre a nosso único critério: para as repassarmos a médicos quando necessário. Em viagens, por exemplo, um prontuário acessível (ou parte dele) poderia ser mostrado a médicos e hospitais em caso de necessidade. Ainda restaria não resolvido o caso em que, por algum incidente grave, não tenhamos condições de conscientemente liberar com presteza o acesso a nossos dados vitais.
A simbiose do homem com dispositivos eletrônicos incorporados traz melhoras importantes em diagnósticos, tratamentos e suporte vital, mas não podemos ignorar os aspectos éticos e de segurança a preservar. Que a atenção e divulgação dadas a estes avanços divulgue também com o mesmo destaque seus efeitos colaterais e riscos inerentes. Como em Hamlet, “nada é simplesmente bom ou mau em si”.