Desejo de ter menos filhos gera busca por laqueaduras e outros contraceptivos
A procura de métodos prolongados para reduzir o número de filhos, evitar ou atrasar a primeira gestação tem crescido recentemente.
Tal comportamento mostra como casais e, sobretudo, mulheres, estão atentos à necessidade do planejamento familiar para a própria sobrevivência e qualidade de vida.
O aumento está ligado a alterações feitas na Lei dos Direitos Reprodutivos (lei n° 9263/96) nos anos 2022 e 2024, permitindo que qualquer pessoa com 21 anos de idade (independente do número de filhos) ou pelo menos dois filhos possa solicitar o ato cirúrgico (vasectomia para homens e laqueadura tubária para mulheres), desde que respeitado um prazo mínimo de 60 dias entre o pedido e a cirurgia.
Especialistas afirmam que a simplificação nos critérios para acesso a contraceptivos (da pílula anticoncepcional à esterilização) possibilitou maior acesso por mulheres jovens aos métodos no país.
Não foi, contudo, o caso da gestora de tráfego Bianca Veiga, 27 anos e moradora de Diadema, na região da Grande São Paulo. Ela buscou a laqueadura de 2020 a 2021 e acabou ficando grávida enquanto aguardava um método contraceptivo mais seguro pelo SUS (Sistema Único de Saúde) -a negativa foi pela idade (tinha então 24 anos)– e ficou nove meses esperando por um DIU (dispositivo intrauterino).
“Sou casada e escolhi fazer o planejamento familiar porque não tinha esse sonho. Amo minha filha mais que tudo, mas não me imaginava sendo mãe. Aconteceu e agora ela já vai fazer 3 anos”, relata. Até hoje, ela aguarda a autorização de algum profissional na UBS (Unidade Básica de Saúde) atendida para o procedimento.
Com a mudança da lei, porém, mais mulheres puderam buscar os métodos -e, assim, ter maior controle sobre quando e como desejam ser mães.
Além do período de 60 dias, o solicitante deve passar por aconselhamento de equipe multidisciplinar da saúde, “com vistas a desencorajar a esterilização precoce” mas, se mantida a vontade, não há nada na legislação que impeça a realização do procedimento, diz a lei.
Segundo a SES (Secretaria de Estado de Saúde) de São Paulo, o número de laqueaduras feitas pelo SUS saltou de 22.392, em 2022, para 39.276, em 2023 -um aumento de 75,4%. A inserção de DIU também cresceu, passando de 41.118 para 43.255 procedimentos no mesmo período (alta de 5,2%).
A pasta informa ainda que, apenas nos dois primeiros meses do ano, já foram feitas outras 7.137 laqueaduras e 6.256 inserções de DIU –o equivalente a 18,17% e 14,46%, respectivamente, dos procedimentos realizados em 2023.
No município de São Paulo, segundo a SMS (Secretaria Municipal de Saúde), até março deste ano foram feitas 418 inserções de DIUs e 2.353 procedimentos de laqueadura tubária.
Veiga conta que, durante o pré-natal e em todas as consultas (feitas com duas médicas diferentes), ela solicitou a realização de uma laqueadura no parto, mas foi informada que isso só seria possível se tivesse uma cesárea. Em 2024, com a mudança da lei mudou, isso não passou a ser mais necessário, sendo condição para esterilização cirúrgica durante o parto apenas uma solicitação prévia mínima de 60 dias e que haja “as devidas condições médicas”.
“Se eu tivesse parto normal, disseram que já poderia colocar o DIU naquele momento. Levei o pedido para o hospital e falaram que não seria possível de imediato porque peguei uma infecção”, diz.
Apenas seis meses depois do nascimento da filha -e muitas voltas à UBS-, a gestora conseguiu colocar um implante hormonal que uma enfermeira recomendou como método “melhor que o DIU”.
Em resposta, a SMS diz que foram encontrados dados da gestora na UBS Jardim Lourdes apenas a partir da primeira consulta de pré-natal e que “não há registro de solicitação para processo de esterilização voluntária da usuária”.
Não haveria também registro de intenção de uso do DIU pela paciente, que “teve o bebê em junho de 2021 e, em novembro do mesmo ano, optou pelo implante subdérmico [comercializado pelo nome Implanon]”.
Sobre a negativa da laqueadura, a assessoria diz que “à época do pedido a lei estipulava idade mínima de 25 anos ou pelo menos dois filhos vivos, tópico que só seria alterado em 2 de setembro de 2022, pela Lei Federal nº 14.443”.
Agora, a pasta diz estar seguindo a regra vigente, com laqueadura liberada a partir de “21 anos completos, independentemente do número de filhos vivos”, não sendo inclusive “necessário o consentimento de cônjuges para a sua realização, assim como o histórico de cesarianas”. A laqueadura no parto normal, por sua vez, foi liberada em 22 de março de 2024, por meio da portaria n° 1.549 do Ministério da Saúde.
Os dois procedimentos, ainda segundo a pasta municipal, tiveram um aumento de 2022 a 2023, de 10.255 para 12.415 (tanto laqueaduras quanto inserções de DIUs).
Para a ginecologista Consuelo Callizo Genes, diretora médica do Centro Médico e das Clínicas Elsimar Coutinho, que realiza atendimento sobre questões reprodutivas gratuita pelo SUS, o planejamento familiar melhora as condições de vida da população, reduzindo a pobreza.
Ela pondera que a quantidade de filhos não impacta apenas nos gastos da família, mas também sua capacidade produtiva e financeira, especialmente das mulheres.
“Se eu quero ter dez filhos, eu tenho dez filhos; mas se eu não quero, tenho que ter esse direito de escolha”, diz Genes. As condições financeiras dos pacientes não devem ser limitantes do acesso a contraceptivos, explica a ginecologista.
“A laqueadura e a vasectomia são o fim da linha, porque, se houver arrependimento, é muito difícil a reversão dessas técnicas. Além de serem extremamente caras, são difíceis de serem feitas”, destaca.
Sobre a demora no SUS para conseguir uma laqueadura, a médica conta que há sim uma fila de espera e que mães com mais filhos tendem a ter prioridade, sendo que até a falta de acesso a exames pré-operatório, como um simples eletrocardiograma, dificulta o processo.
O advogado e escritor Marcelo Valio, professor titular no Centro Universitário Social da Bahia (Unisba) que atua com direito de pessoas vulneráveis, diz que a infração dos direitos reprodutivos implica na exclusão do poder de decisão, especialmente de mulheres.
“Não havendo possibilidade de sucesso junto a esse órgão, podem buscar denunciar junto ao Ministério Público e procurar a Defensoria Pública ou através de um advogado particular”, afirma o professor, indicando ainda para buscar a assistência social de cada cidade.
Em casos de demora excessiva na disponibilização ou falha na medicação, seja fornecida pelo SUS ou por convênio, existe a possibilidade de requerer judicialmente uma indenização para contribuir com o sustento da criança não planejada. É preciso, porém, comprovar que houve espera desproporcional.
“Os órgãos [responsáveis] têm a obrigação de disponibilizar esses recursos e não devem colocar barreiras para o exercício desses direitos reprodutivos lícitos”, explica o advogado.
POR DANIELLE CASTRO