Uso de crack se dissemina em Marília na última década
O crack não para de avançar por Marília. De acordo com autoridades locais, a invasão do crack se deu principalmente na última década. O consumo mais que dobrou na cidade.
Derivado da cocaína, o crack é aquecido e fumado. Chama-se assim por causa do som de um pequeno estouro ou estalido quando consumido.
A droga é a forma mais potente da cocaína, entre 75% e 100% puro, relativamente mais barata do que o pó branco e com potencial muito maior de destruição e degradação ao usuário.
As polícias militar e civil já apreenderam 6,9 quilos de crack em Marília em 2017, enquanto em todo o ano passado foram 2,8 quilos da mesma droga.
A SSP (Secretaria de Segurança Pública) do Estado mostra 115 ocorrências relacionadas ao tráfico entre janeiro e abril deste ano, mas não é possível saber em quantas delas a droga envolvida era especificamente o crack.
O delegado da Dise (Delegacia de Investigação Sobre Entorpecentes), Luís Marcelo Perpétuo Sampaio, afirma que nos 12 anos em que atua na especializada, a presença dessa droga “dobrou ou triplicou” em Marília.
Quando alguém vai preso, outra pessoa assume. Uma ‘biqueira’ é fechada, outras são abertas. Para o delegado, o aumento está relacionado com o crescimento da população e ele afirma que a polícia não consegue vencer sozinha o problema.
São dezenas de ‘bocas de fumo’ catalogadas pela Dise e os principais locais estão frequentemente no noticiário policial do Marília Notícia. Constantemente são feitas prisões e apreensões de drogas nesses pontos.
Uma ‘biqueira’, segundo informações retiradas pela Polícia Civil de pessoas envolvidas com o tráfico, vende 500 pinos com crack por dia pelo preço de R$ 5 cada.
“Na rua Salvador Salgueiro são várias, uma do lado da outra. No Azaleia, Argollo Ferrão. Principalmente em toda a periferia, na margem dos itambés”, aponta o delegado sobre alguns dos principais pontos de tráfico e consumo.
Em alguns deles são vendidos tipos variados de drogas, em outros existe a especialização no crack, maconha ou cocaína. “Em alguns locais são as mesmas famílias que dominam o bairro há 30 anos. O avô já foi preso, o pai, e agora são os netos que estão traficando”, diz o delegado.
Para ele, o problema é social e envolve questões como desfavelamento e até saneamento básico. “São áreas totalmente precarizadas onde o tráfico ocorre”.
O uso de crack também está diretamente ligado aos mais variados tipos de crimes, como roubos, furtos e até homicídios.
Consumo
Segundo o delegado, o tráfico no varejo e o consumo de crack em Marília afetam principalmente pessoas mais pobres. Apesar de existirem usuários provenientes de várias classes sociais, uma parte importante são moradores rua, por exemplo.
Normalmente, o uso de ilícitos passa pela maconha, e o vício se dá inicialmente com a cocaína. “O cara não consegue manter a coca porque é mais cara e acaba indo para o crack, onde ele não consegue mais trabalhar, fazer nada. Fica em função da droga”, comenta o chefe da Dise.
De acordo com ele, mesmo entre os traficantes o uso de crack é mal visto.
Muitas vezes usuários se envolvem com crimes de furto ou roubo. A evasão escolar também é uma característica dos viciados.
De acordo com Márcia Regina Ramos, enfermeira do Caps-AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas), aproximadamente 6% da população da cidade usa crack e a maioria é do sexo masculino. Em 90% dos casos, o uso desse entorpecente também está associado à bebida alcoólica.
Márcia afirma que o círculo social também conta. “Os vínculos estão muito arraigados com a questão das drogas”, diz.
Dependência e codependência
A reportagem conversou com uma assistente social, que não quer ter a identidade divulgada, mas tem vários familiares que se tornaram dependentes químicos do crack.
“Tenho uma constelação de dependentes químicos na minha família, primo, irmãos, sobrinho, uma sobrinha”.
Por causa disso, ela acabou se especializando no problema profissionalmente e narrou o drama que as famílias vivem.
“Os estudos mostram que duas pedras de crack podem viciar. O poder é muito grande. O organismo absorve a substância muito fácil, então cada vez mais o corpo pede doses mais altas”.
Diferente de outras drogas, a assistente social diz que viu o crack transformar usuários que conhece muito rapidamente e que o furto de objetos dentro de casa é quase um padrão para a manutenção do vício.
“A fissura é tão forte que a família começa a ser furtada, para a compra da droga. Por isso são chamados de ‘nóias’, pois perdem a moral. Mais do que isso, todos que estão em volta adoecem juntos, se tornam codependentes. Então são dois caminhos, ou o usuário é expulso de casa e muitas vezes começa a roubar, ou começa a usar a droga ali dentro”, relata.
Para a assistente social, porém, é justamente com o apoio da família que o vício pode ser superado. “Com apoio é um caminho difícil, mas até 70% podem se recuperar. Sem a família, nem 10% saem dessa”. A religião é uma importante ferramenta nesse processo.
Invasão do crack
Dos 645 municípios do Estado de São Paulo, pelo menos 558, incluindo a capital, enfrentam problemas relacionados à droga, conforme mapeamento do Observatório do Crack, da Confederação Nacional de Municípios (CNM).
Em 193 cidades do interior, o nível desses problemas é muito alto, segundo o ranking, atualizado em tempo real com informações de prefeituras. Em outras 259, o alerta é médio; e, em 105, baixo.
Apenas 20 cidades disseram não ter problemas com o crack. Outras 67 não responderam oficialmente o levantamento.
De 608 municípios paulistas ouvidos este mês passado (incluindo dados parciais), 92% afirmaram enfrentar problemas com a circulação de drogas, enquanto 95% confirmaram problemas com o consumo delas. As prefeituras informaram ainda que as principais áreas afetadas são Saúde (67,1%), Assistência Social (57,5%) e Segurança (49,1%).
O Observatório do Crack inclui grandes cidades do interior na “lista vermelha” da droga, entre elas Marília, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto e Bauru [veja o mapa aqui].
E a droga continua avançando em municípios menores como Campos Novos Paulista, Vera Cruz, Pompeia, Echaporã e Garça, todos na região de Marília.
Tratamento
O Caps é vinculado à Famema, ou seja, ao Governo do Estado, e oferece 30 vagas para acompanhamento intensivo de usuários de entorpecentes. São reuniões de segunda a sexta durante pelo menos um mês.
Uma equipe com enfermeiros, médicos, psicólogos e assistentes sociais fazem parte do trabalho. “Muitos chegam e não ficam. Outros acabam tendo recaídas e não voltam. Eles até iniciam a abstinência, mas o difícil é mantê-la”, comenta Márcia.
“Quando adolescentes e jovens chegam aqui são trazidos pelas famílias. E quase sempre estão envolvidos com o tráfico e pequenos delitos”, diz.
Os que ficam no tratamento – a maior parte entre 30 e 49 anos – fazem parte de oficinas terapêuticas e participam de grupos de conversa sobre o tema com outras pessoas nas mesmas condições, onde são partilhadas experiências. Ainda assim, o percentual de sucesso é baixo.
Desintoxicação
Com o uso crônico, quase sempre é preciso ser feita a desintoxicação do usuário de crack, antes que o acompanhamento no Caps seja feito.
Bruno Armentano, administrador do HEM (Hospital Espírita de Marília) conta que ali são oferecidos 40 leitos para dependentes químicos de 62 municípios da região, quase sempre encaminhados pelo Hospital das Clínicas.
“O usuário de drogas fica muito comprometido fisicamente e psicologicamente. O hospital oferece suporte para tirar o efeito da droga”, comenta. A internação normalmente é de 15 dias e existem casos em que é feita com determinação judicial.
Armentano afirma que a demanda de jovens entre 20 e 25 anos é cada vez mais alta. “Antes atendíamos mais casos relacionados ao álcool, hoje é o crack, com certeza. Não sei se o uso da droga fez a sociedade excluir o usuário, ou o contrário”.
Fora da rede pública, existem em Marília duas clínicas particulares que oferecem internação para dependentes, sem garantia de sucesso. Outros grupos na cidade, principalmente ligados a igrejas, tentam ajudar no abandono do consumo. Nesses locais vencer o vício também é um grande desafio.
Programa municipal
O presidente da Câmara Municipal de Marília, vereador Delegado Damasceno (PSDB), está trabalhando para a efetivação do programa municipal que instituiu o auxílio para tratamento e recuperação dos dependentes químicos.
“Estamos solicitando ao prefeito municipal Daniel Alonso e a secretária municipal de Assistência Social, Wânia Lombardi informarem ao Poder Legislativo em que fase se encontram os estudos que visam regulamentar a Lei n.º 7.468/2012, que institui o programa municipal de auxílio ao tratamento e recuperação dos usuários dependentes de álcool e outras drogas”, observou o vereador.
Damasceno contextualizou que o mesmo assunto serviu de base para inúmeros requerimentos de sua autoria enviados para a administração municipal anterior.
“O vício não escolhe classe social e, portanto, nossa preocupação é oferecer às famílias o tratamento adequado para seus entes, pois, lamentavelmente cresce o número de jovens em Marília envolvidos no mundo das drogas. Em casos graves, quando o usuário está muito comprometido, o acompanhamento e internação hospitalar são necessários e fundamentais para dar início à recuperação”, afirmou o presidente.
De acordo com a Lei n.º 7.468/2016, o programa municipal de auxílio ao tratamento e recuperação oferece às famílias com renda inferior a três salários mínimos um aporte de até R$ 900 para o tratamento de dependência.
Para as famílias com renda entre quatro e sete salários mínimos, o subsídio chega a R$ 500 e para as famílias na faixa de oito a 10 salários mínimos o auxílio é de R$ 300″.
Os valores servirão para auxiliar nos custeios da internação”, explicou Delegado Damasceno. O pedido de efetivação do programa está em requerimento de autoria do presidente.