Como o Instagram virou o ‘passaporte da vacina’ no Brasil
Se você não tem um registro no Instagram do momento em que recebeu alguma dose da vacina contra covid-19, pode se considerar um verdadeiro eremita digital. Ao longo de 2021, as timelines ficaram apinhadas de fotos celebrando a chegada dos imunizantes.
Porém, as imagens de agulha no braço, da carteirinha de vacinação e de alegria com personalidades e funcionários da saúde — como o Zé Gotinha — se tornaram mais do que uma publicação: elas estão sendo usadas para entrar em estabelecimentos e eventos na retomada das atividades. Em outras palavras, o Instagram virou o verdadeiro ‘passaporte da vacina’ no País.
A estratégia já foi usada por Anderson Souza, ator de 25 anos, para entrar em uma festa na cidade do Rio de Janeiro. Já na fila e sem conseguir baixar o app do SUS por conta de uma bateria com pouca carga, Souza tentou a entrada na boa e velha lábia: perguntou para os funcionários na portaria se podia mostrar a foto que tirou recebendo a vacina contra a covid-19 – e se surpreendeu por saber que a ‘gambiarra’ era aceita.
“Achei uma ótima ideia, já que consegui provar que eu estava vacinado e também pude mostrar para as pessoas na fila ali outra forma de conseguir entrar”, afirma Souza ao Estadão.
Para Ludmilla Brandão, 25, a foto foi usada para entrar em um cinema de Teresina (PI). “Eu até baixei o app do SUS na hora e tentei entrar, mas não foi possível cadastrar. Fiquei tentando até a hora entrar no filme, mas não deu certo. Então, eu tentei mostrar a foto como alternativa e aceitaram”, explica.
Eles não são os únicos. Apesar de poder ser acessado por aplicativos do governo, como o Conecte-SUS, e de poder ser apresentado fisicamente, a comprovação pelo ‘book da vacina’ entrou no rol do “jeitinho brasileiro”.
O “book da vacina” ganhou um empurrão extra depois que o Conecte-SUS, app do governo federal de validade da imunização, foi hackeado junto com outros sistemas do Ministério da Saúde, no dia 10. O ataque hacker atingiu também serviços como o Painel Coronavírus, o e-SUS Notifica, o Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunização (SI-PNI), deletando dados de pacientes de todas as plataformas.
Até a conclusão deste texto, a plataforma que certifica a vacina ainda não tinha voltado a funcionar, mas o Ministério da Saúde informou o Estadão em nota que “os dados foram recuperados e que a Pasta trabalha para restabelecer o acesso ao certificado o quanto antes”.
Ingredientes brasileiros
A fórmula do sucesso para essa nova rota de ‘passaporte da vacina’ é uma mistura de dois elementos tipicamente brasileiros: a alta adesão à vacinação e o uso intenso de redes sociais. De acordo com o consórcio de veículos de imprensa, mais de 65% da população está completamente vacinada — paralelamente, o Instagram conta com 114 milhões de usuários brasileiros, segundo a plataforma de dados Statista.
Para Alexandre Inagaki, consultor de redes sociais, o uso do Instagram nada mais é do que o reflexo de uma ferramenta que a maioria dos brasileiros têm na mão.
“Isso é bem característico do Brasil. A gente postou fotos com comprovante da vacina, unindo o útil ao agradável, no caso das redes sociais. As fotos da vacinação foram a versão ‘Zé Gotinha’ daquelas selfies na academia que a gente posta com hashtags”, afirma Inagaki.
Método temporário
Mesmo para quem já se beneficiou do ‘quebra-galho’ pelo Instagram, o método parece ser uma coisa pontual, já que o governo federal e alguns governos estaduais desenvolveram carteirinhas digitais para validar a vacinação em 2021. Para ter a informação no celular, é necessário fazer o download de um dos aplicativos, como o Conecta-SUS, e cadastrar alguns dados pessoais e da dose recebida (como data e lote do imunizante).
Foi o que a Alanna Souza, de 25 anos, fez, depois de usar a foto da carteirinha para entrar em uma festa em Brasília. A estudante afirmou que só usou a imagem uma vez, e logo depois baixou o app para não correr riscos na hora de comprovar a vacinação.
“Eu acabei descobrindo no desespero, porque eu queria muito entrar e eu estava sem comprovante. Então eu perguntei se eu podia mostrar a foto, para mostrar que eu estava muito vacinada. Eu não sabia do app, mas passei a usar”, explica Alanna.
Além de não ser uma comprovação oficial, uma das questões levantadas sobre as publicações no Instagram está na veracidade da informação. Para Marco Aurélio Safadl, médico infectologista da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, a foto pode até ser verdadeira, mas não tem nenhum selo de garantia, o que pode influenciar na credibilidade de segurança do estabelecimento que permite a entrada por esse método.
“Evidentemente, o grau de segurança de um documento oficializado, com código de barra, é diferente de um documento que exibe apenas uma foto. Um dos problemas é que as pessoas que estão dentro (do estabelecimento) pensam que todos ali estão respaldados como ela. Se é só para tirar uma foto, acaba perdendo a credibilidade desse tipo de exigência e acaba sendo uma falta de respeito com quem se preocupou em levar um certificado oficial”.
Safadl ainda afirma que, sem a obrigatoriedade do comprovante, eventos e estabelecimentos, como bares e restaurantes, até podem optar por aceitar as fotos de vacina, mas que é necessário deixar claro para os outros clientes que essa é uma das formas permitidas de comprovação.
O que dizem as autoridades
À reportagem, a prefeitura de São Paulo informou que estabelecimentos com menos de 500 pessoas não precisam exigir nenhum tipo de comprovação de vacina, portanto, quaisquer outros métodos são de escolha próprio local. A reportagem, porém, tem conhecimento de pelo menos dois eventos na cidade com capacidade superior a 500 pessoas que aceitaram o método no último mês.
Em nota, o Ministério da Saúde afirmou: “Há algumas alternativas para a comprovação de vacinação contra a covid-19, dentre as quais o cartão recebido nos postos de saúde após as aplicações, e os certificados emitidos por sistemas próprios de alguns estados e municípios”. O órgão, porém, não comentou sobre a utilização específica das redes sociais no processo.
Há quem não concorde com a utilização das redes e se sinta inseguro com essas medidas. Mesmo tendo entrado no cinema com a foto, Ludmilla acredita que a fraca fiscalização tem colocado em xeque a segurança sanitária de quem está saindo de casa.
“Eu acho que a fiscalização não está sendo rígida. Fui atrás para saber se o cinema aceitava isso como comprovante, e, caso não aceitassem, eu voltaria para casa. Mas o próprio atendente disse que não estavam fiscalizando tanto e que eu estava me preocupando à toa. Eu só voltei a participar de algumas coisas mês passado, mas ainda assim sinto que devemos continuar evitando ao máximo coisas que apresentarem riscos”.
São palavras que ecoam as de Inagaki. “A fiscalização tem sido na base da ‘vista grossa’. Ao menos em grande parte dos restaurantes e bares, principalmente os que medem temperatura pelo pulso e não pela testa, uma selfie vale tanto quanto essas medições. Não deveria ser assim. Mas no País em que o lockdown não teve muito de lockdown, é mais do que natural (infelizmente) que a fiscalização da vacina seja na base da gambiarra instagrâmica”.