Como o ‘cosplay’ manteve produções em meio à pandemia
Levou um mês para Michelle Anderson criar seu figurino para a E3 2019, principal feira de games do mundo, em 2019. Depois, demorou uma hora para vesti-lo. Ela usava uma peruca de cabelo vermelho com afro puffs, um colete tático verde-militar e curativos manchados de sangue falso. Para completar o traje, usou luvas médicas e uma máscara presa no pescoço, depois ela deu uma última olhada no espelho antes de sair pela porta. Ela estava vestida como “Lifeline”, a médica de combate do jogo de videogame “Apex Legends”, mas não tinha ideia de que aquela seria uma das últimas vezes que faria cosplay em público.
Michelle é uma cosplayer, uma pessoa que se veste como um personagem fictício de um videogame, um livro ou um filme. Uma junção das palavras “costume” (fantasia) e “play” (representar), o cosplay tem crescido continuamente em popularidade como um hobby, e, às vezes, até mesmo como uma profissão. Onde quer que os fãs se reúnam, seja nas redes sociais ou em convenções presenciais, os cosplayers podem ser encontrados completamente caracterizados e, algumas vezes, atuando como seus personagens favoritos.
Para fazer jus ao traje de sua personagem, Michelle completou o figurino com um acessório: o drone Dr. Cura e causou um grande impacto nos participantes da E3 2019. “Teve uma garota que chorou quando me viu, dizendo ‘Você é o melhor personagem; posso tirar uma foto com você?'”, disse Michelle. “Essa sensação é incrível. O carinho da comunidade é incrível.”
No ano seguinte, a maior parte dos Estados Unidos entrou em lockdown para mitigar a pandemia de covid-19. Como trabalha em um setor considerado essencial, Michelle não teve o privilégio de ficar em casa. Trabalhando na área da Baía de São Francisco para uma empresa de TV a cabo e internet, seu serviço era considerado fundamental para o novo paradigma do trabalho de casa. Todos os dias ela ia trabalhar usando o mesmo tipo de luvas médicas de seu cosplay de “Lifeline”, mas por uma razão muito diferente.
“Estou feliz por ter sido capaz de ajudar outras pessoas a trabalharem de casa e permanecerem seguras”, ela disse. “Mas fico mexida ao pensar nisso tudo, pois foi muito estressante. Tive que me preocupar se iria pegar covid-19 ou não porque eu estava vendo centenas de pessoas por dia.”
Para relaxar de um trabalho que era alternadamente exaustivo e assustador, ela recorreu ao seu passatempo favorito: cosplay. Michelle, como a maioria dos cosplayers, estava acostumada a planejar seus trajes de acordo com os eventos. Quando eles desapareceram, ela se viu sem rumo. Mas naquele período incerto, Michelle e outros cosplayers de todos Estados Unidos lançaram mão da mesma criatividade que mostravam ao fazer seus trajes ao encontrar novas maneiras de compartilhá-los.
Looks virtuais
Ejen Chuang, fotógrafo de cosplay e autor de “Cosplay In America” (Cosplay nos Estados Unidos, em tradução livre), disse que, com base em suas pesquisas informais no fandom, era comum que cosplayers tivessem suas participações em eventos reduzidas durante a pandemia. No entanto, surgiram algumas oportunidades no ano passado: até mesmo com alguns eventos assumindo um formato virtual e trazendo alguns cosplays com eles. Hashtags como #MaskYourMasquerade (algo como “ponha uma máscara em seu personagem”) da Anime Expo e #DragonConGoesVirtual (DragonCon torna-se virtual) incentivaram os cosplayers a exibirem seus looks e ganharem prêmios enquanto estavam seguros em casa.
Alguns cosplayers também acharam maneiras seguras de se encontrarem presencialmente durante a pandemia. Chuang organizou diversas sessões de fotos com distanciamento social em seu apartamento em Austin, no Texas. Ao usar lentes teleobjetivas, ele podia fotografar a aproximadamente 2 metros de distância enquanto simulava a proximidade.
“Você normalmente mostra a parte de trás da câmera à medida que fotografa o cosplayer”, ele disse, referindo-se à tela LCD de uma câmera digital. “O que eu tive que fazer foi colocar minha câmera em um banco, afastar-me cerca de dois metros de distância e, depois, o cosplayer olhava a câmera, dizia o que tinha achado, distanciava-se e, então, eu pegava a câmera outra vez.”
Para aqueles que trabalham como cosplayers, a natureza do trabalho focada em eventos ameaçava seu modo de ganhar a vida. Os cosplayers profissionais pagam suas contas com participações em eventos; cancelamentos significam cheques de pagamento cancelados. Yaya Han, uma cosplayer profissional, precisava arranjar um plano B.
Tendo começado com o hobby quando era adolescente, Yaya passou as últimas décadas aperfeiçoando seu ofício. Por meio de uma combinação de participações em eventos pagos, venda de mercadorias autografadas, criação de estampas de cosplay, tecidos e aviamentos para o varejo de massa e operação de uma loja de acessórios e materiais de cosplay com três funcionários em tempo integral (seu marido e dois colegas cosplayers), o hobby agora é um trabalho. Ou era, antes de tudo mudar.
“Eu realmente achava que minha carreira estava estabelecida”, disse Yaya. “Tinha acabado de escrever um livro a respeito dos meus 20 anos como cosplay. A pandemia, na verdade, subverteu minha mentalidade e me fez pensar sobre quais serão meus próximos passos. ”
O que veio depois proporcionou “vários níveis de pavor e preocupação” para ela. Com parentes morando na China, Yaya se preocupava com a saúde e a sobrevivência deles. Com todas as suas participações como cosplay canceladas, ela também estava preocupada em como continuaria pagando seus três funcionários. Além disso, a pandemia desencadeou um sentimento antiasiático na cidade onde mora, Atlanta, na Geórgia. Ela ainda evita sair sozinha.
Mas, acima de tudo, Yaya estava abalada pela grande quantidade de mortes. Enquanto pensava no que faria em seguida, ela começou a costurar máscaras para os vizinhos idosos e, depois, a entregar centenas delas em hospitais da cidade. Como Yaya tem uma loja de cosplay onde vende suprimentos e acessórios feitos à mão para cosplayers, ela já tinha um estoque de tecido de algodão e tiras de elástico, que poderiam ter sido difíceis de achar nos primeiros dias da pandemia. Depois, Yaya ensinou seus funcionários a fazer as máscaras e começou a oferecê-las em sua loja ao lado dos acessórios para cosplay. Isso a ajudou a manter seu pequeno negócio funcionando.
“Percebi que poderia cortar as horas de trabalho de todo mundo ou ensiná-los a fazer máscaras e resolver o sistema de trabalhar de casa, para evitar o contato, e ao mesmo tempo podia continuar produzindo este novo produto”, ela disse.
O outro componente da nova carreira de Yaya era uma nova área que está crescendo na pandemia, o cosplay remoto patrocinado. Em um exemplo, Yaya foi contactada por uma equipe de marketing que trabalhava com o “Resident Evil Village” da Capcom, um jogo de tiro de horror focado em atirar e estrelado pela vampira perversa Lady Dimitrescu. Yaya teve duas semanas para criar o traje, desenvolver um cenário de fundo, tirar fotos, gravar vídeos e postar tudo em suas redes sociais com as hashtags e frases indicadas. O processo culminou em uma sessão de fotos de 11 horas com seu marido e o fotógrafo Brian Boling. A empresa a compensou com um pagamento de quatro dígitos.
“É difícil avaliar seu valor”, disse Yaya. “Tenho todos esses anos de experiência negociando convenções. Mas isso me levou de volta ao ponto de partida. Sou novata outra vez. Ainda estou aprendendo.”
Atualmente, quando Yaya faz parceria com uma empresa, ela assina um acordo de confidencialidade antes mesmo de saber de qual personagem fará o cosplay. Este mesmo acordo a impede de compartilhar fotos do processo de fabricação dos trajes ou falar dele com outros participantes da comunidade cosplay. Não está claro o quão sustentável esse novo fluxo de renda será, disse Yaya.
“Durante a pandemia, muitas dessas empresas passaram a fazer divulgações online porque elas também não podiam contar com os eventos. Quando eles voltarem, será que ainda vão me querer para esse tipo de colaboração?”
Apesar de todas as mudanças e turbulências, Yaya continua esperançosa. “Sobrevivi mais de vinte anos. Tenho certeza de que encontrarei uma maneira de seguir em frente”, afirmou.
Para os cosplayers amadores, as redes sociais também se tornaram o lugar para exibirem seus trajes. Em meados de 2020, Michelle criou uma conta no TikTok e encontrou uma nova maneira de interagir com outros cosplayers. Um vídeo dela desfilando com vários de seus cosplays com uma canção de Nicki Minaj ao fundo atraiu dezenas de milhares de visualizações.
“Coisas assim me ajudavam a manter a saúde mental porque me mostravam que eu ainda era capaz de me divertir com minha comunidade, mesmo em uma pandemia”, disse Michelle. “Isso manteve minha autoestima elevada.”
Marie Chante Ramos, enfermeira de UTI e cosplayer, também recorreu às redes sociais durante a pandemia, embora a princípio tivesse pouco tempo para postar seus trajes. Trabalhando em turnos noturnos no Raritan Bay Medical Center em Old Bridge, Nova Jersey, ela atendeu tantos pacientes com covid-19 que a UTI do pequeno hospital esteve transbordando por meses.
“Quando recebemos nosso primeiro paciente com covid-19 na UTI, foi quase como se a guerra estivesse chegando”, disse Marie. “Até as enfermeiras com mais de 30 anos de experiência ficaram abaladas”.
Marie encontrou consolo entre os colegas cosplayers do setor de saúde. Em um grupo de bate-papo, ela e outras pessoas compartilhavam suas experiências, encorajamentos e o ocasional meme de cosplay. Um dos memes mais populares nos primeiros dias da pandemia foi o desafio #passthebrush (passe o pincel), no qual os participantes simulam passar um pincel de maquiagem, tapando brevemente a tela com suas cerdas antes de revelar uma dramática transformação cosplay. Isso deu a Marie uma ideia. E se ela e seus amigos fizessem a mesma coisa, mas com um estetoscópio?
“Somos profissionais de saúde, mas nos transformamos em qualquer pessoa que quisermos por meio do cosplay. Então eu disse no bate-papo, ‘Ei, não seria legal se fizéssemos um vídeo com nosso equipamento de proteção individual?'”, disse Marie.
Com seus corpos escondidos pelos EPIs da cabeça aos pés, Marie sabia que era fácil para os pacientes e o público em geral vê-los como uma coisa só, sem rosto, em vez de pessoas reais que eram tão ou mais afetadas emocionalmente pela perda diária de vidas. O vídeo resultante, “Heroes Behind the PPE” (Heróis por trás dos EPIs), mostra Marie e 22 outros cosplayers compartilhando seus papéis duplos: profissionais de saúde e heróis fantasiados. No momento em que este texto foi publicado, o vídeo tinha quase meio milhão de visualizações.
“Gostei de poder lançar alguma luz sobre esses profissionais de saúde que também têm um lado criativo”, disse Marie. “O hospital não é a única coisa acontecendo em nossas vidas.”