Com aval de Danilo e Benetti, empresário é quem definiu edital
A investigação da Polícia Federal de Marília, que esmiuçou o ‘escândalo dos tablets’, mostra como uma parte do edital da licitação – documento base para a concorrência – foi redigido pelo próprio empresário Fauzi Fakhouri Junior, declarado vencedor do certame.
O homem que, em uma conversa com um advogado comparsa declara que “odeia andar com gente pobre”, é cunhado do vereador Danilo Bigeschi (PSB) e um dos mentores do esquema criminoso que tirou dos cofres públicos de Marília, mediante fraude, mais de R$ 1 milhão em recursos federais vinculados do Bloco de Vigilância em Saúde, que inclui, entre outras frentes, o combate à dengue.
Os dados constam em relatório policial que complementou a ‘Operação Reboot’, após a quebra de sigilo de telemática (mensagens de e-mails, inclusive). A análise da Polícia Federal foi concluída em setembro do ano passado e complicou ainda mais a situação dos réus.
O Marília Notícia teve acesso com exclusividade ao material. Após as buscas e apreensões nas empresas e residências dos envolvidos, a quebra de sigilo autorizada pela Justiça permitiu detalhar como a quadrilha agiu para fraudar o certame.
Durante as buscas, os investigadores já haviam encontrado com Fauzi uma cópia do termo de alteração/prorrogação do pregão presencial, sem assinatura ou numeração de folhas.
Na prática, trata-se de um documento de interesse da administração pública, que não deveria circular com empresários. A posse revela como o meticuloso e sistemático cunhado de Danilo cuidou pessoalmente para que o edital favorecesse os interesses da quadrilha.
Seguindo os rastros
No computador do advogado Vinícius Dias Vieira da Cruz, réu na operação e suposto responsável por empresa envolvida na fraude – concorrente de fachada – a polícia encontrou a minuta do mesmo documento.
Após um pedido de impugnação, a Prefeitura deveria fazer alterações no edital. O relatório policial indicou que, na verdade, as mudanças visavam incluir restrições à competitividade, em um jogo de ‘cartas marcadas’.
A quebra de sigilo permitiu identificar e-mails trocados entre Vinícius e Fauzi, que tratavam das alterações que deveriam ser feitas na licitação, para garantir que a Kao Sistemas seria a vencedora.
Nas mensagens, os investigados usavam títulos como “propostas de texto”, “alterações.09-06-2016.docx” e “resposta Marília”. O fluxo intenso de arquivos foi rastreado e a polícia identificou, por exemplo, que foi Fauzi quem incluiu no edital obrigações de capacidade técnico-profissional.
Os itens, que visavam restringir o caráter competitivo da licitação incluíam, por exemplo, a exigência de profissional com registro no Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (Crea), para fornecer os tablets e prestar assistência técnica.
Embora como Assessor Especial da Saúde Danilo Bigeschi respondesse pelo expediente na ausência do secretário (Hélio Beneti), coube a outro comparsa, segundo a polícia o coordenador Fernando Pastoreli, a tarefa de assinar o edital e uma das alterações na licitação.
No relatório final, o delegado Paulo Eduardo Aguilar da Silva, apontou o conluio entre os núcleos político e empresarial do esquema.
“Conclui-se, à luz dos e-mails ora analisados, que a decisão proferida pelo então Secretário Municipal de Saúde Hélio Benetti, com relação à Impugnação Administrativa em face do Edital do Pregão Presencial n’ 135/2016, bem como seu subsequente Termo de Alteração / Prorrogação, foi, na verdade previamente elaborada com a participação até então apurada das pessoas de Vinícius Vieira Dias da Cruz, Fauzi Fakhouri Junior e Alexandre Ribeiro.”
Com o esquema, o grupo saqueou da Prefeitura R$ 1.057.500,00, por 450 tablets – o custo unitário de R$ 2.350,00. Os mesmos aparelhos foram comprados pela empresa de Fauzi por R$ 945,59, gerando ao grupo um lucro de R$ 631.984, 45 (superfaturamento de 147,5%)
Rastreio de valores
As investigações também identificaram movimentações bancárias suspeitas nas contas dos envolvidos. Mais que isso, uma série de aberturas de contas bancárias em Marília, além de diversos depósitos feitos pelo advogado Vinícius em favor de empresas que participavam do conluio.
“Não apenas isso, os dados obtidos com a quebra de sigilo bancário também revelaram que, após o depósito milionário realizado pela Prefeitura de Marília/SP na conta da empresa Kao, iniciou-se uma incomum recorrência de saques de altos valores em espécie realizados na boca do caixa”, aponta trecho da denúncia do Ministério Público Federal.
“Após o valor (de R$ 1.057.500,00) ser empenhado (em 15/07/2016), o denunciado Fauzi abre a já citada conta pessoa física na Agência 0011 do Banco Santander, em Marília/SP, em 20/07/2016; já em 25/07/2016, o denunciado Danilo abre conta na Agência nº 3609 do Banco Bradesco Prime, na Avenida Sampaio Vidal, 659, também em Marília/SP; em 01/08/2016, o denunciado Fernando abre conta na Agência nº 0002 do Bradesco, que fica no mesmo endereço da conta de Danilo, Avenida Sampaio Vidal, 659; e, no mesmo dia 01/08/2016, o denunciado Helio também abre uma conta no Banco Bradesco, na mesma Agência em que Danilo e Fernando haviam inaugurado contas (3609). E, para arrematar as “coincidências”, verifica-se que as Agências dos dois bancos (Santander, onde Fauzi tem conta, e Bradesco, onde Danilo, Fernando e Helio abriram conta) distam apenas dois quarteirões uma da outra”, apontou a denúncia do MPF.
O ex-comissionado da Saúde Fernando Pastoreli, por exemplo, recebia R$ 5,5 mil por mês e está tendo que explicar à Justiça a movimentação de R$ 34.250 na sua conta e da esposa, além de depósito de R$ 10 mil que efetuou em benefício do chefe, Hélio Beneti.
Ele alegou ter recebido valores em dinheiro, em virtude do falecimento da sogra. Alegou ainda que havia tomado dinheiro emprestado de Beneti meses antes, de maneira informal.
O então secretário confirmou ter ajudado financeiramente o colega de trabalho, usando dinheiro em espécie que guardaria em casa.
Na fase de inquérito policial, Fauzi Fakhouri, o advogado Vinícius Vieira Dias e Alexandre Ribeiro de Jesus não foram ouvidos.
O delegado responsável pela investigação encerrou o inquérito, “considerando que a investigação se encontra devidamente instruída e não havendo mais a possibilidade de condução coercitiva de investigados em face de decisão do Supremo Tribunal Federal (direito constitucional do investigado permanecer calado), entendo ser desnecessária a protelação de conclusão da investigação para unicamente ouvi-los, o que, sob o manto do contraditório, poderá ocorrer em Juízo”, encerrou Paulo Aguilar da Silva.
O caso tramita na Justiça Federal de Marília – por se tratar de recursos da União. São apurados crimes como fraude em licitação, corrupção ativa e passiva, peculato, lavagem de dinheiro e falsidade ideológica. Há indícios, segundo o Ministério Público Federal, de que parte dos valores desviados foram usados na campanha de Danilo Bigeschi à Câmara de Marília em 2016.