Casos TikTok e Musk põem holofote em debate político sobre redes e soberania digital
Nos Estados Unidos, uma lei aprovada pelo Congresso pode resultar no banimento do TikTok no país. Já no Brasil, as ameaças do dono do X, o empresário Elon Musk, de descumprir decisões judiciais levaram ao debate público a especulação sobre um eventual bloqueio da plataforma.
Ambos os casos, em alguma medida, mobilizam a discussão sobre soberania digital dos países para fazer cumprir suas ordens, leis ou decisões sobre empresas de tecnologia que operam em todo o mundo sem barreira física.
Há diferenças sobre o que está em jogo. No caso brasileiro, o respeito ao Judiciário, enquanto nos Estados Unidos, a segurança nacional.
No Brasil, Musk prometeu “derrubar restrições” no X (o antigo Twitter) impostas por decisões judiciais do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal). Além disso, uma comissão do
Congresso dos EUA divulgou relatório com uma série de decisões e ofícios sob segredo de Justiça emitidos pelo magistrado. Os ofícios foram entregues pela rede social a pedido do órgão, que é presidido por um aliado de Donald Trump.
Não há evidências de que o X tenha desbloqueado perfis. Ainda assim, o tema da soberania acabou sendo mobilizado diante da ameaça de descumprimento -que foi comemorada entre os bolsonaristas.
Um ponto ainda a ser esclarecido é como contas suspensas conseguiram fazer transmissões online pela plataforma, como apontou a Polícia Federal.
Já a lei sancionada nesta quarta-feira (24) pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, proíbe o TikTok no país se a ByteDance, empresa chinesa dona do aplicativo, não se desfizer dele em nove meses.
A justificativa para o apoio à medida é o que o app seria uma ameaça à segurança nacional enquanto for de propriedade da ByteDance. Entre as preocupações está a de a empresa fornecer dados ao governo chinês -apesar de não haver evidências de que isso tenha ocorrido.
No Brasil, a ofensiva de Musk contra Moraes teve consequências políticas e têm sido mobilizada de modos diferentes pela direita e esquerda.
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus filhos, que manifestaram enfático apoio a Musk, não se pronunciaram nesta quarta sobre a decisão do Congresso dos EUA a respeito do TikTok, que está alinhada à posição do aliado Trump.
Já a esquerda viu a investida de Musk contra Moraes como um ataque à soberania nacional, como disse o ministro Paulo Pimenta (Comunicação Social), e como um argumento pela regulação das redes -o PL das Fake News, no entanto, acabou enterrado neste meio tempo.
A posição foi reforçada nesta quarta com a iniciativa do Legislativo dos EUA em relação ao TikTok.
“Interessante como o Congresso deles trata as plataformas como questão de soberania nacional, mas para o resto do mundo querem a falsa liberdade do neoliberalismo”, declarou Ivan Valente (PSOL-SP).
Francisco Brito Cruz, que é diretor executivo do InternetLab, centro de pesquisa sobre direito e tecnologia, avalia que a lei dos EUA é um precedente que alimenta um discurso de que Estados devem sair banindo e suspendendo plataformas, a despeito das consequências que esse tipo de medida possa ter em como a internet funciona.
“Lógico que os Estados têm que exercer algum nível de controle, mas desprezar o que pode significar essa fragmentação é não olhar para a forma como a internet foi construída até hoje e o que ela ainda pode agregar nesse sentido”, diz. “O mundo seria muito diferente se existisse uma internet só brasileira, uma internet só americana, uma internet só iraniana.”
O bloqueio de aplicativos de mensagem é tema de ações pendentes de julgamento no STF.
Clara Iglesias Keller, líder de pesquisa em tecnologia, poder e dominação no Weizenbaum Institute de Berlim, não vê como comparar a gravidade das medidas de bloqueio que já foram tomadas no Brasil e o que prevê a lei aprovada contra o TikTok.
Ela argumenta que enquanto esta última pode implicar em uma proibição definitiva, os casos brasileiros tratavam, ainda que se possa discutir quanto à proporcionalidade das medidas, de bloqueios frente a casos concretos e específicos no Judiciário.
Keller adiciona que a iniciativa dos EUA pode acabar reverberando no cenário brasileiro. “Reforça os debates sobre até onde um país pode e deve ir para exercer sua soberania online, tão antigos quanto a expansão da internet para o uso civil”, diz.
Após repetidas declarações como a de que descumpriria decisões, Musk foi incluído por Moraes no inquérito das milícias digitais. Se de um lado há críticas quanto à jusficativa para a medida, paira incerteza sobre a efetividade de eventuais sanções penais ao empresário, que não mora no Brasil e cuja plataforma opera sem que sua sede física em São Paulo seja fundamental para a operação no país.
É um problema comum no mundo digital, diz o advogado Renato Opice Blum. Embora a lei possa ser clara, diz, é difícil fazê-la valer em casos como esse ou mesmo em situações em que a empresa nem sequer tem uma filial no país. Em sua avaliação, esse problema só poderá ser solucionado com convenções internacionais. Elas permitiriam a execução mais céleres de ordens judiciais sobre o tema de um país em outro.
Ao tratar desse tema, o aspecto econômico é fundamental, afirma Luca Belli, professor da FGV Direito Rio. Ele aponta a importância de investimento no desenvolvimento de tecnologia própria para garantir a soberania digital, o que valeria tanto para redes sociais como, por exemplo, para inteligência artificial.
É isso que impediria que um país fosse impactado por uma decisão unilateral de uma empresa digital ou do país que a abriga. “Fora os Estados Unidos e a China, todos os outros países são basicamente consumidores de tecnologia digital”, diz.
“Estão em uma situação de colônia digital, em que sua sociedade e sua democracia são definidas por tecnologias criadas por atores estrangeiros que conseguem extrair bens valiosíssimos, como os dados de seus cidadãos.”
Ironicamente, a decisão americana pode dificultar ainda mais uma regulação no Brasil, avalia João Victor Archegas, pesquisador sênior de Direito e Tecnologia do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade) Rio.
Isso porque o mercado brasileiro se tornaria ainda mais relevante para a empresa –hoje, segundo o portal Statisa, é o terceiro, atrás apenas dos EUA e da Indonésia.
“Imagino que o TikTok também passaria a investir muito mais dinheiro em relações governamentais no Brasil para tentar influenciar ainda mais tentativas de regulação que possam ir na contramão dos seus interesses econômicos”, diz.
POR RENATA GALF E ANGELA PINHO