Brasil celebra 30 anos de glória do ‘pato feio’ no Mundial de basquete
“Dei assistência para a Paula e desperdicei uma da Helen”, disse animadamente Olga Bagatini, 30, enquanto deixava a quadra de basquete no último domingo (9). “Deu saudade.”
A jogadora amadora participou de um dos eventos comemorativos dos 30 anos da grande conquista feminina do Brasil na modalidade, o triunfo da seleção na Copa do Mundo. Em 12 de junho de 1994, em Sydney, o time verde-amarelo, dirigido pelo então desconhecido Miguel Ângelo da Luz, 35, derrotou a China por 96 a 87 e levantou o troféu.
Olga, portanto, tem saudade de um tempo em que era bem novinha. Tinha um mês e cinco dias quando Hortência, Paula e Janeth, com notável contribuição de jovens como Leila e Alessandra, alcançaram o que parecia improvável. Mas o dia é mesmo memorável para os fãs brasileiros do basquetebol, até mesmo para quem não acompanhou a façanha ao vivo.
“Éramos o pato feio do campeonato. Chegamos sem cobrança, sem pressão. Jogamos com humildade”, disse Hortência à Folha, logo após a vitória. “Fomos atrás de algo que talvez ninguém achasse que fosse possível. O mundo do basquete, até pela retrospectiva dos quatro anos anteriores, jamais imaginava que a gente seria campeã”, repetiu Paula ao jornal, três décadas depois.
Uma bolsa de apostas da Austrália, que era a sede da competição, apontava o Brasil como a 11ª equipe com mais chances de título entre as 16 na disputa. As craques Hortência, 35, e Paula, 32, haviam anunciado que o torneio seria seu último pela formação nacional. Eram da mesma faixa etária do técnico, um desconhecido até para as próprias jogadoras.
“No início, a gente achava um desrespeito com quem fazia basquete feminino trazer um cara do Rio de Janeiro que tinha experiência só no masculino, no juvenil”, recordou Paula. “Quando saiu a convocação, tinha um nome ali que a gente não sabia quem era. Começamos a ligar umas para as outras: ‘Quem é?’. A gente ficou apreensiva”, afirmou Hortência.
“Não é que eu era pouco conhecido. Eu era totalmente desconhecido”, divertiu-se o treinador, que superou a desconfiança dando espaço às atletas nas tomadas de decisão. “Eu sempre fui aberto aos diálogos, às vezes era até incompreendido pelas pessoas por isso, mas sempre trabalhei assim, fazia o jogador ser meu cúmplice. Eu não impunha nada. Lógico que a palavra final era minha, mas eu ouvia.”
Isso ficou evidente no duelo semifinal com os Estados Unidos -time que, superado por 110 a 107, só voltaria a perder um jogo 12 anos depois. Leila, que vinha bem, sentiu dor forte no pé e seria substituída a um minuto e meio do fim. Hortência berrou com Miguel, cancelou a troca e disse a Leila: “Amanhã você pensa na dor”.
“Eu vi que, depois do pedido de tempo, a Leila ficou no banco e falei: ‘O que acontece?’. ‘Ela está com dor.’ ‘Dor nada, bota ela de volta'”, recordou a ala-armadora. “Pensei: ‘Pô, não vou perder a chance de ir a uma final’. Mas aí você vê o respeito que você e o treinador têm. A gente criou uma intimidade para isso.
Existia cumplicidade, entendimento. Não só comigo. Com a Janeth, a Paula Ele reconhecia nossa experiência, não estava lá para falar: ‘Eu que fiz’.”
“Sempre houve muito diálogo”, lembrou Paula. “Não era aquela liderança do distanciamento, da falta de segurança, do ‘não posso falar com as jogadoras’. Talvez ele não tivesse a experiência e a competência de outros que foram treinadores da seleção, mas houve essa parte motivacional e de diálogo.”
Com diálogo, um tanto acalorado, é verdade, Leila superou a dor, terminou a partida contra as norte-americanas, recebeu o devido tratamento médico e teve participação decisiva na final contra as chinesas.
“Ela parecia um gato”, afirmou Janeth, recordando a agilidade da ala, que interceptou passes, atirou-se na direção de bolas divididas e tornou muito mais difícil a vida da pivô Zheng Haixia, de 2,04 m.
“Eu estava ali para colaborar e fazer a minha parte. Cair de cabeça na bola era o que eu mais fazia”, disse a hoje ex-jogadora de 49 anos, parte do clã Sobral, com outros nomes relevantes do basquete brasileiro, como a irmã Marta. Três décadas depois, ainda ecoa a voz de Hortência em seu ouvido. “Ela me deu um esporro, né? Chego a me arrepiar de falar”, disse Leila.
Da mescla de jovens como ela, que tinha 19 anos, Cíntia, 19, Alessandra, 20, Helen, 21, e Roseli, 22, com a experiência das realmente impressionantes Paula e Hortência, brotou uma equipe especial. A veloz e talentosa Janeth, 25, era uma espécie de elo entre as gerações, além de parte fundamental nos letais contra-ataques brasileiros -ela entrou, com Hortência, na seleção do campeonato; Paula, injustamente, ficou fora.
Foi muito bacana esse encontro de praticamente três gerações. Cada uma sabia muito bem qual era sua função. Quando um time ganha e você fala que estava unido, parece um clichê, mas realmente houve uma sintonia grande, uma harmonia enorme. As mais novas, por essa falta de idade, tinham menos pressão, não pensavam: ‘Ai, meu Deus, vamos enfrentar os Estados Unidos’. A gente até brinca que a Alessandra falava: ‘Quem é essa Lisa Leslie?'”, gargalhou Paula, referindo-se à craque norte-americana.
A campanha teve duas derrotas: para a Eslováquia, na primeira fase, e para a China, na segunda. Era obrigatória uma vitória sobre a Espanha para a classificação às semifinais, uma virada dramática com seis lances livres precisos de Janeth, em sequência, nos 20 segundos derradeiros. Contra os Estados Unidos, que pareciam pouco preocupados com o “pato feio”, Hortência, com 32 pontos, e Paula, com 29, foram determinantes.
Na revanche contra a China, no Sydney Entertainment Centre, a grande preocupação era conter Haixia.
Uma força-tarefa que tinha Alessandra, Ruth e Cíntia -com uma frequente dobra na marcação, geralmente executada por alguém mais ágil, como Leila- procurava frustrar a grandalhona, que conseguiu seus 27 pontos, mas levou múltiplos tocos e viu vários dos passes que lhes eram direcionados virarem roubadas de bola.
“A gente não tinha muito acesso a vídeos, como acontece hoje. A gente reviu o primeiro jogo contra elas e conseguiu neutralizá-las. As meninas foram superdisciplinadas, ora marcando pela frente, ora por trás, ora dobrando. Tudo o que foi planejado acabou dando certo”, sorriu Miguel Ângelo da Luz.
“Foi até importante a derrota para a China, porque a gente ganhou experiência. Não era o jogo da morte ainda. Mas equipe teve sabedoria, inteligência e humildade para entender o que estava errado e corrigir na final. Foi um jogo duro, a escola asiática é uma que a gente não gosta de enfrentar, mas deu tudo certo”, disse Hortência.
Sua memória é mais viva do que a de Olga a respeito daquele 12 de junho de 1994, porém o sentimento é semelhante.
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POR MARCOS GUEDES