Alíquota zero na cesta básica beneficia empresas com maior poder de mercado, diz Appy
Aprovada sob o pretexto de beneficiar a população mais pobre, a alíquota zero sobre a cesta básica beneficia as empresas com maior poder de mercado, que podem não repassar todo o alívio aos consumidores.
Essa é a avaliação do secretário extraordinário da reforma tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, em entrevista.
A dinâmica se aplica, entre outros mercados, ao de carnes –item incluído nos instantes finais da votação na Câmara dos Deputados na lista de produtos da cesta básica nacional desonerada.
Ele, contudo, pondera que a equipe econômica não tem um estudo setorial aprofundado para avaliar quem será o maior beneficiado na cadeia ou até mesmo se haverá esse repasse de preços para o consumidor final.
“Quando você adota a alíquota zero, muitas vezes isso não é necessariamente repassado para o preço e alguém na cadeia acaba se beneficiando. Quem está na cadeia? Pode ser o produtor rural, o frigorífico ou o próprio supermercado. Vai depender muito da estrutura de mercado”, diz Appy.
“Quem tem mais poder de mercado geralmente acaba se beneficiando mais dentro desse processo. Se tiver uma estrutura claramente competitiva em todas as etapas, isso amplia a possibilidade de repasse para o preço. Quanto mais falhas na livre competição houver ao longo da cadeia, mais isso tende a ser refletido em apropriação do benefício para alguém no meio da cadeia”, acrescenta.
A inclusão de proteínas animais na cesta básica foi um dos maiores impasses nas negociações do texto.
Diante da pressão da bancada ruralista e de diversos partidos, as carnes foram incorporadas de última hora pelo relator da regulamentação da reforma tributária.
Essa não era a posição defendida nem pela equipe econômica nem pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), diante do impacto sobre a alíquota média do IVA (Imposto sobre Valor Agregado). O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por sua vez, propôs a desoneração do frango.
No dia da votação, deputados da oposição e da base do governo Lula associaram a gigante JBS, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, ao debate da inclusão das carnes na cesta básica.
Questionado sobre a empresa ter sido pivô da discussão e principal beneficiada pela medida, Appy disse não ter a “menor ideia”. Segundo ele, foi uma “decisão política” do Congresso.
Quanto aos efeitos que serão sentidos pelos produtores de diferentes portes, Appy diz em uma análise preliminar que haverá pouca diferença para os pequenos, mas que o tema ainda precisa ser analisado com calma para uma conclusão definitiva. “Tem um crédito presumido para compensar os créditos não recuperados. Se for bem calibrado, deve mais ou menos manter a isonomia”, afirma.
O secretário ressalta que o grande produtor se encaixa totalmente no regime não cumulativo. “Se é um produtor de carne, quando [o produto] for vendido no mercado doméstico, todo o imposto pago na cadeia vai ser restituído na forma de crédito. Se exportar, a mesma coisa, porque vai com alíquota zero”, diz.
“O pequeno produtor rural não é contribuinte, não recupera crédito nas compras, mas vai ter um crédito presumido na venda quando ele vender para um contribuinte aqui dentro do Brasil. Se esse crédito presumido for bem calibrado, ele anula o efeito dessa restituição do crédito para os grandes produtores”, continua. “Ele precisa ser bem calibrado, mas a ideia é fazer isso de uma forma bem-feita tecnicamente.”
A principal preocupação com a inclusão das carnes era o impacto sobre a alíquota de referência da reforma tributária. Segundo Appy, a elevação prevista de 0,53 ponto percentual corresponde apenas às carnes. Ele destaca que ainda é preciso contabilizar qual será o impacto dos outros itens, como queijo, sal, óleo de milho, aveia e farinhas.
De acordo com o secretário, em comparação à situação atual, “todos os produtos que entraram na cesta básica terão uma tributação menor do que têm hoje”.
Appy afirma que até o momento a Fazenda não tem nova estimativa para a alíquota média de 26,5% com as mudanças que foram feitas na Câmara. Mas prevê que os cálculos deverão ser divulgados antes de as discussões começarem, de fato, no Senado.
Como a Folha de S. Paulo mostrou, as mudanças dos deputados reduziram a devolução de impostos para os mais pobres. Isso significa que a desoneração para a população de baixa renda será menor que a prevista.
Para Appy, “não dá para falar que a Câmara errou ou acertou” e “a opção política tem que ser respeitada”.
“O Ministério da Fazenda sempre defendeu que preferia ter menos tratamentos favorecidos via alíquotas reduzidas e mais uso de cashback, mas a política acabou levando a ampliar os tratamentos via alíquotas reduzidas”, diz. “Não é o ministério que decide o que deve e o que não deve ser o desenho final da reforma tributária. É o Congresso.”
Na visão dele, eventuais ajustes no Senado “fazem parte do jogo democrático” e o mais importante é preservar a espinha dorsal da reforma tributária. “Nosso trabalho é tentar ajudar que essas decisões sejam fundamentadas.”
Appy diz ter visto como positiva a inclusão de uma trava para garantir que a alíquota de referência dos tributos não ultrapasse 26,5%.
A trava prevê que se o Congresso quiser ampliar ou conceder alguma nova isenção ou benefício, será preciso cortar de outro lado para evitar um aumento na alíquota padrão.
Caberá ao Executivo encaminhar um projeto de lei complementar para propor alteração nos descontos concedidos. Appy minimiza o fato de não haver garantias para aprovação desse projeto.
“A própria Câmara criou uma situação [em] que vai ter que tomar essa decisão no futuro. Ela colocou a obrigação de se posicionar sobre esse ponto. Não tem como obrigar o Congresso a aprovar algum projeto, isso não existe”, diz.
“Lógico que vão aparecer os lobbies, isso faz parte da democracia. É uma disputa entre setores econômicos, essa é a questão. Não é uma disputa nem ideológica nem partidária.”
Appy diz que a Fazenda poderá apresentar ao Senado um “menu” de medidas para garantir a redução da alíquota. Isso passa por medidas de redução de tratamentos favorecidos e por revisão da lista de produtos que estão com alíquota zero ou com alíquota reduzida.
Segundo ele, o cardápio ainda será trabalhado, mas cabe aos parlamentares deliberarem sobre os itens.
“A gente tem que sentir o que o Senado quer discutir. Não tem como a Fazenda impor pauta, temos que estar à disposição para ajudar, tecnicamente, caso o Senado queira discutir esses temas, seja um ajuste agora ou uma sinalização mais clara de como vai fazer esse ajuste em 2031”, diz.
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POR NATHALIA GARCIA E VICTORIA AZEVEDO