“A deficiência ainda é tratada como uma desvantagem social”, diz Lucas Dantas
Poucos quarteirões separam o apartamento do escritório onde o jovem advogado Lucas Emanuel Ricci Dantas encaminha diariamente sua carreira jurídica pelas vias do Direito.
Pelo caminho, que atravessa cuidadosamente sobre sua cadeira de rodas motorizada, na zona leste de Marília, ele revisita obstáculos de mobilidade urbana que o remetem às limitações impostas pelas convenções que se acostumou a superar ao longo da vida.
“A deficiência ainda é tratada como uma desvantagem social”, diz o advogado nascido com paralisia cerebral, dificuldade da fala e de coordenação motora que se fez bacharel, mestre e doutor sem nunca ter conseguido escrever.
Em entrevista ao Marília Notícia, Lucas Dantas conta como locomoveu sua história pela vida pessoal e profissional e alcançou suas realizações, adaptando-se à sua realidade e amando a vida como ela é.
Aos 34 anos, Lucas Dantas advoga há dez no escritório ao lado da esposa e da irmã, também advogadas, de colegas de profissão e dos estagiários cujas mãos são seus passos pelos caminhos da Justiça.
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MN – Que tipo de obstáculos o senhor encara todo dia para ir e voltar de cadeira de rodas da casa ao trabalho e vice-versa?
Lucas Dantas – Eu gosto de andar com a minha cadeira para vir ao escritório. Mas calçadas do bairro são uma lástima. Tem muito buraco. Todo mês estou fazendo reparo da roda da cadeira. Apenas quando chove eu vou e volto de carro.
MN – A situação é a mesma no acesso aos espaços judiciários da cidade?
Lucas Dantas – A maioria dos prédios tem bons acessos, rampas e elevadores. Aqui em Marília a gente ainda tem dificuldade na Justiça Federal. O prédio não comporta adaptação. Quando vou pra lá não subo e preciso pedir para ser atendido.
MN – E o senhor costuma ser atendido?
Lucas Dantas – Sim, sempre. O juiz desce para me atender. É importante a gente ter um espaço reservado para conversar. Advocacia requer sigilo. Na Vara da Fazenda de Marília, por exemplo, não tinha como acessar porque a escadaria é grande. Aí o Tribunal conseguiu instalar um elevador de plataforma. Assim, posso falar com o juiz. Essa é ideia da Justiça: o acesso.
MN – Em quais áreas o senhor dá acesso de Justiça àqueles que te procuram?
Lucas Dantas – No meu escritório atuamos em todas as áreas do direito. Temos um profissional responsável por cada área. Eu atuo no direito médico, das pessoas com deficiências, e também no imobiliário. Trabalhamos muito com questões de tratamento, de convênios, de direito a medicações e fraldas e de ações relacionadas ao uso do canabidiol.
MN – Em julho deste ano o senhor mesmo foi autorizado a cultivar a cannabis para o próprio tratamento…
Lucas Dantas – É bom explicar isso. As pessoas me perguntam se eu planto na minha casa. Eu sou associado a uma entidade chamada Maria Flor e o cultivo acontece lá. Eu consumo o óleo que é produzido e que faz muita diferença na minha qualidade de vida. Alivia as dores que sinto no quadril. Tenho uma artrose que dificulta muito a minha movimentação. O óleo me ajuda nisso.
MN – Tem sido muito recorrente a procura pelo senhor para demandas de ordem médica?
Lucas Dantas – Bastante. Mesmo para o direito a dietas e questões relacionadas a erros médicos, inclusive os relacionados a partos. Mas não é só isso. Minha atuação é forte em Marília, mas também no Estado de São Paulo e em outros estados.
MN – Por falar em parto, a sua história como pessoa com deficiência começou ali. Como foi aprender a crescer com suas limitações?
Lucas Dantas – A gente aprende quando não tem outro modelo. Não costuma ser fácil para quem não nasce com deficiência e se torna um. Em nasci sem oxigenação no cérebro. Fiquei em coma por 14 dias. E quanto acordei estava com paralisia cerebral, que afetou a parte de coordenação motora e de fala. Mas a situação da pessoa com deficiência varia para cada pessoa. Viver com paralisia cerebral não tem sido tão difícil. Eu tive e tenho ajuda da família e dos amigos.
MN – Apesar de tanto afeto, o senhor ainda se depara com situações de preconceito?
Lucas Dantas – Sim, da sociedade de uma forma geral. Na minha vida, enfrentei preconceito na escola. No Brasil, a gente tem que provar alguma coisa para merecer estar lá. É muito aquela questão da meritocracia. A deficiência ainda é tratada como uma desvantagem social. E aí você tem que estar provando algo que, talvez, não precisasse. Ter deficiência não deveria ser um problema.
MN – Dadas as suas dificuldades motoras, como foi aprender a escrever?
Lucas Dantas – Eu gosto de dizer que sou um semianalfabeto (risos). Eu não escrevo. Quando se tem uma deficiência, você desenvolve outras habilidades para sobreviver. Para quem é deficiente isso é muito normal. Mas, para quem está de fora, é estranho. Pelo fato de não conseguir escrever, sempre usei cópias para estudar, seja na escola, na faculdade, no mestrado e no doutorado. Na escola, estudei através das cópias dos cadernos dos meus colegas. Estudava pelo que eles escreviam.
MN – Inclusive na faculdade?
Lucas Dantas – Sim. Na faculdade eu desenvolvi um método. As cópias demoravam muito para chegar. Então, para cada matéria que eu tinha, eu ia na livraria e comprava uma doutrina. No Direito Penal, por exemplo, pegava o tratado. Eu lia tudo antes sobre crimes, códigos.
MN – Sem conseguir escrever, o senhor foi avaliado por provas orais?
Lucas Dantas – Sim, toda vida. Eu ditava e escreviam. Não é oral apenas. Sempre tinha alguém que era minhas mãos. O difícil era fazer prova de Matemática (risos). Eu tinha que falar ‘nove, dividido por tal, multiplicado por ‘x’’. Ia fazendo dessa forma. Hoje eu já não sei fazer, mas já cheguei a fazer exercícios da fórmula de Báscara assim.
MN – Isso já é difícil para quem escreve, mas resolver cálculos matemáticos assim…
Lucas Dantas – Mas aí é que está. É o que falei há pouco. Para quem está de fora parece algo muito surreal. Para mim, é o único meio para fazer virar algo fácil.
MN – Quem escreve para o senhor hoje?
Lucas Dantas – Hoje tenho dois estagiários que são as minhas mãos. Eu dito tudo e eles digitam. As minhas teses de mestrado e doutorado foram todas digitadas por pessoas que me auxiliaram. Esse é o meu normal. Às vezes falo até rápido demais, porque o raciocínio flui, mas depois reviso tudo.
MN – Quais seriam, a seu ver, as principais deficiências de um advogado?
Lucas Dantas – As principais seriam a ansiedade e não respeitar o tempo de maturação de uma carreira. Tenho dez anos na profissão e já passei por várias fases. Faz parte. A advocacia é uma boa profissão. Penso que o medo também seja uma deficiência. O medo te restringe muito. O advogado tem que saber arriscar, sair da caixa, compreender a realidade social na qual ele está inserido.
MN – Há vida além da advocacia, não?
Lucas Dantas – Minha infância e adolescência foi muito boa. Passei por momentos de negação, que todo jovem tem, mas que com deficiência é amplificada. Depois que você se aceita dá para fazer de tudo, desde que entenda seus limites. Tudo é possível. Nunca me recusei de ir a festas, barzinhos, à igreja. Sou um cara que gosta de sair.
MN – Ou seja, a deficiência não te impede de ter uma vida dentro da sua normalidade.
Lucas Dantas – Exato. Por isso eu gosto de ir e voltar sozinho. Eu vejo as coisas, converso com as pessoas. Ainda quero ampliar ainda mais meu escritório para atender ainda mais pessoas. Espero ter condições de continuar a levar uma vida comum. A deficiência não é uma roupa. Eu não vou chegar em casa e coloca-la em um cabide. É uma condição. E sou feliz do jeito que sou.