‘Ela surgiu de um conflito dentro da própria Apae’, diz fundador sobre início da Amei
Fundada pelo professor de Educação Física Celso Parolisi Filho há 21 anos, a Associação Mariliense de Esportes Inclusivos (Amei) se tornou referência nacional no esporte paralímpico. Sua trajetória sempre esteve ligada ao esporte e às pessoas com deficiência, uma paixão que começou na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), onde Parolisi trabalhou por muitos anos. Foi lá que surgiu a ideia de ampliar o atendimento, que inicialmente era voltado apenas para pessoas com deficiência intelectual.
A demanda por um trabalho mais abrangente, que incluísse pessoas com deficiências físicas e visuais, levou à criação da Amei, em uma parceria com pais que compartilhavam a mesma visão e lutaram para que a entidade tivesse condições de ofertar o esporte acessivo para os assistidos.
A Amei começou em um espaço modesto, mas hoje funciona com uma estrutura completa e se transformou em um verdadeiro centro de treinamento com piscina, quadra coberta, campo de futebol e áreas adaptadas para a prática de atletismo.
A evolução da Associação Mariliense de Esportes Inclusivos é evidente não apenas na infraestrutura, mas também no impacto que teve na vida de centenas de pessoas. Atualmente, cerca de 300 crianças são atendidas pela associação, das quais 50 se destacam no esporte de alto rendimento.
A Amei tornou-se um ponto de referência para atletas que buscam não só treinar, mas também competir em nível nacional e internacional.
Entre os destaques da Amei estão os atletas Daniel Martins, Alana Maldonado e Rebeca Silva, que estão representando o Brasil nas Paralimpíadas. Os atletas da Amei começam a competir nesta terça-feira (3).
A entidade é muito mais do que uma associação esportiva. É símbolo de superação e de como o esporte pode ser agente de inclusão social, ao romper barreiras e mudar a percepção da sociedade sobre as pessoas com deficiência.
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Celso – Eu sou o fundador da Amei, mas eu sempre trabalhei como professor, técnico esportivo. Sempre atuei na área. Sempre trabalhei com a natação e, de uns anos para cá, meu filho assumiu a natação depois de se formar. E eu vim para o atletismo. Estava faltando um técnico de atletismo, eu tinha um pouco de experiência e vim somar, para poder dar continuidade ao trabalho.
MN – Qual que é a sua formação profissional?
Celso – Eu sou professor de Educação Física. Tenho pós-graduação e sempre trabalhei, praticamente 90% da minha vida profissional dentro do esporte com pessoas com deficiência. Trabalhei muitos anos na Apae. Depois de lá veio essa ideia de ampliar, porque na Apae era só deficiência intelectual. Aqui começou a “procura” por deficiência física, deficiência visual. Depois começou a ter problema, pois começou a crescer a demanda e a gente teve que fazer um trabalho diferente. Foi aí que nasceu a ideia de se fazer a Amei. Com alguns pais, a gente fundou [a entidade] há 21 anos.
MN – Como foi a evolução para chegar até aqui?
Celso – Hoje a gente acha que está no melhor momento da Amei porque a gente está em um espaço novo fantástico, com um clube praticamente. No antigo espaço, a gente só tinha uma piscina e a rua de fora para treinar. Hoje a gente tem todo esse espaço maravilhoso. Fora isso, temos pessoas competentes, não só na área de esporte, propriamente falando, mas nessa parte de gestão. Acho que hoje sem o Levi, que cuida dessa parte de gestão da Amei, ela não estaria funcionando. Hoje é preciso um profissional com essa visão, em busca de projetos, em busca de melhorias.
MN – Você sempre focou mais na prática espotiva?
Celso – Eu sempre fui aquele romântico de fazer o esporte, de ensinar, de ir para as competições. Durante esses 21 anos, a gente nem sabe como participou de tantas competições. Eu falo assim, realmente acho que é uma missão lá de cima. Vão aparecendo os anjos para ir encaminhando a gente para terminar cada etapa dessa missão.
MN – Como as pessoas olham esse projeto atualmente?
Celso – Hoje a sociedade já tem uma visão completamente diferente da pessoa com deficiência. Você tem que estar integrado, fazendo esporte. Eu acredito que a colaboração de todo mundo ajudou a mudar essa visão da sociedade, de que as pessoas com deficiência não são coitadinhas. Tanto é que as Paralimpíadas estão aí, e hoje o pessoal acompanha e vê quem são super-heróis, conseguindo medalhas, com resultado bem mais satisfatório do que as pessoas sem a deficiência.
MN – Como foi no início da Amei?
Celso – Foi bastante difícil, porque ela surgiu de um conflito dentro da própria Apae. A gente desenvolvia esse trabalho competitivo dentro da Apae há alguns anos. Praticamente, o esporte paralímpico do Brasil se iniciou com a federação das Apaes, fazendo esses campeonatos. O pessoal dormia em uma Apae, participava dos campeonatos, ia para uma outra cidade, participava dos jogos, isso foi praticamente o pontapé inicial do esporte paralímpico. Algumas outras equipes trabalhavam com deficiente físico, algumas com visual, mas algo muito esporádico, primário, bem rústico. Ali foram os primeiros movimentos paralímpicos.
MN – E qual conflito aconteceu com vocês?
Celso – Dentro da Apae tinha uma diretoria que assumiu, que não concordava muito com esse trabalho de esporte paralímpico e de competição. Achava que tinha que ficar só na Educação Física, mas a gente já tinha uma visão mais ampla. Queria que tivesse um professor de Educação Física, mas que tivesse um para fazer a parte esportiva de competição. Um treinador mesmo. Então tivemos um conflito.
MN – Foi quando decidiu fundar a Amei?
Celso – As mães também não queriam perder esse trabalho lá na Apae, mas o presidente na época não queria esse trabalho. Eu já tinha a ideia dessa associação e, quando contava para alguém, as pessoas me diziam que eu estava bem na Apae, que ia procurar sarna para me coçar. Mas quando é missão, eu sempre falo, vai pelo amor ou vai pela dor. E aí tive que ir pela dor. Foi uma situação, talvez uma das mais desagradáveis da minha vida. Precisou de todo esse processo na vida da gente, difícil e doloroso, para que a realidade viesse à tona, que era a formação da Amei.
MN – Se não fosse por isso, talvez você estivesse até hoje lá?
Celso – Com certeza. Estaria lá e não teria chegado no nível que chegou hoje. Porque ali, a gente ficaria com os deficientes intelectuais e não teria dando chance para deficiente físico e visual. Hoje muitos autistas. Cresceu muito a procura e a gente não ia ter como pegar essa demanda, porque ela é específica como uma associação para a pessoa com deficiência intelectual. Eu acredito muito que o destino colocou esse conflito para que a gente pudesse crescer.
MN – Onde a Amei ficava anteriormente?
Celso – Já faz uns dois anos que eu estou aqui com o atletismo, mas a Amei com toda a sua programação veio no começo do ano. Aquele espaço sempre foi a nossa casa, lá na Apae mesmo, nos fundos. Nos últimos 10 anos, o negócio cresceu. Chegou um tempo que não dava mais para continuar trabalhando na Apae, devido à grande procura. Foi quando a Prefeitura me deu um cargo comissionado. Eu acho que fui o único da história que fiquei com 20 ou 22 anos de cargo comissionado direto, por causa do trabalho e não por causa da política em si. Porque era um trabalho que havia necessidade dentro da cidade. Tinha um trabalho bom realizado, trazendo resultados positivos. Entrava e saía prefeito, mas eu continuava. Só saí porque a Amei conseguiu se profissionalizar.
MN – Como é hoje essa relação com o município?
Celso – Antes eles davam dinheiro para manter. Hoje, a Amei presta serviço com a Prefeitura. Com essa prestação de serviço, com esse dinheiro, eles me contrataram para continuar o trabalho e eu saí da Prefeitura. Senão fosse por isso, eu acho que daria para ficar uns bons anos lá.
MN – Durante os últimos anos houve um crescimento muito grande aqui da Amei?
Celso – É que o trabalho começou a ser mais profissional. O Levi começou a fazer um trabalho profissional, de projetos com governo federal, estadual e com os empresários de Marília. Hoje temos um professor só para natação de treinamento esportivo, que é o Lucas, meu filho. Eu fico com o atletismo. A Zinha fica com a iniciação da natação. Hoje tem outros professores que fazem basquete, tem futsal. O professor João trabalha junto comigo no atletismo, mas mais na parte da musculação. Hoje tem os assistente social e a Amei se tornou grande referência, em nível nacional.
MN – Como eram os treinamentos no início?
Celso – Eram aos trancos e barrancos, como foi sempre a história da Amei, com bastante dificuldade. Quando comecei lá em 2003, 2004, 2005, eu era sozinho. Não tinha ninguém. Às vezes entrava 30 crianças ao mesmo tempo dentro da piscina comigo. Eu acho que tinha proteção divina, porque nunca aconteceu nada. A gente nunca teve ocorrência nenhuma durante todo esse tempo. Eu acredito que tive muita sorte, tive muita ajuda, tanto humana como espiritual. A gente seguiu esse trabalho e hoje temos essa belezura toda com uma referência a nível nacional.
MN – Como é a estrutura hoje da Amei?
Celso – Hoje é uma estrutura completa, porque aqui era um clube. Eu moro aqui ao lado. Esse percurso eu fiz durante todo esse tempo porque a Apae também é aqui pertinho. Eu passava e mentalizava que a gente podia vir para cá. Era um clube da Polícia Militar, que não estava mais sendo utilizado. Eles alugavam algumas coisas para não fecharem definitivamente. Hoje com a nossa entrada, com projetos, a gente está buscando recursos e está tentando deixar tudo em ordem. Aqui tem a piscina, tem uma quadra, tem campo de futebol e um espaço bom para o pessoal que é cadeirante desenvolver o trabalho de atletismo, área que usamos para os lançamentos, arremesso de peso, lançamento de disco, lançamento de dardo. No campo, dá para fazer corrida. Não é o ideal para o atletismo, mas é muito melhor do que estar correndo na rua. A gente tem uma quadra coberta, que isso talvez seja melhor de tudo. Deu para começar com o basquete, com o futsal e tem agora a projeção de outras modalidades, como vôlei sentado. Tem uma porção de projetos na mesa do Levi para fazermos neste espaço.
MN – Quantas pessoas são atendidas hoje pela Amei?
Celso – Temos um trabalho social, a maioria é criança. Hoje a gente deve ter cerca de 300 atendidos. Destes, acho que 50 são de alto rendimento e o restante é trabalho social, que vem mais pela saúde e para a integração.
MN – Hoje a academia que vocês possuem é voltada para o alto rendimento?
Celso – Ela é pequena e não dá para atender todo mundo. Lá no antigo espaço a gente tinha um ou dois aparelhos apenas. Hoje já temos vários aparelhos e uma condição muito melhor.
MN – Três atletas da Amei disputarão as Paralímpiadas?
Celso – Temos o Daniel, que sempre foi atleta, sempre treinou aqui em Marília com a gente. Só agora nos últimos meses, que ele resolveu arrumar um técnico no Rio Grande do Norte e foi para Natal. A Alana a gente descobriu ela andando na rua. Percebemos que ela tinha uma deficiência visual. Ela veio para treinar comigo, no atletismo ou natação, porque ela era forte. Perguntei se ela nunca tinha feito esporte e ela disse que era campeã de judô. O Levi entrou em contato com a federação de judô e ia ter um campeonato três meses depois, um campeonato brasileiro. Ela fez as avaliações, inscrevemos ela e já foi campeã brasileira, porque ela já tinha performance. Ela competia com atletas sem deficiência. Ela arrebentou e, em sete ou oito meses, já estava em campeonato internacional. Em um ano, ela já era a 2ª melhor do mundo. Um ano e meio, e ela já era a melhor do mundo. Hoje ela treina em São Paulo. Estava até treinando no Palmeiras. Nas competições convencionais, ela participava pelo Palmeiras e na Paralímpica, e faz questão de participar em nome da Amei, pela consideração que tem, com a amizade com o Levi. Foi a Alana que trouxe a Rebeca, que é essa outra atleta, que é amiga dela de competição. A equipe lá, acho que falhava com ela nessas coisas de inscrição de campeonato, bolsa atleta. O Levi faz tudo isso com a maior eficiência e a Rebeca também representa a Amei.
MN – Tem mais atletas vindo para representar a Amei?
Celso – Tem um pessoal que quer participar de competições pela Amei, porque sabe do carinho que a gente trata os atletas. Eles devem ser tratados com todo o respeito e algumas associações não fazem isso, abandonam eles e deixam na mão. Quando eles sabem que tem um clube bacana, que faz tudo aquilo que eles precisam, eles vêm para cá. Então hoje a gente tem essas duas, Alana e Rebeca, muito mais por respeito à nossa associação, que isso é bacana também, até porque a gente não tem aulas de judô aqui.
MN – Como foi o início do Daniel aqui na Amei?
Celso – O Daniel eu fui atrás dele. Fiquei sabendo que ele tinha problema, mas a gente não sabia direito o que era, mas poderia ser uma deficiência intelectual. Quando eu cheguei lá no Pedro Sola para conversar com ele, ele falou que não queria, porque “não era louco”. Esse foi o linguajar dele. Expliquei que ele teria mais chances de brilhar e ser muito maior no esporte. Ele escutou aquilo e eu saí caminhando. Eu percebi que alguém estava caminhando atrás de mim e então ele bateu nas minhas costas e falou que ia aceitar a proposta. Ele conversou com a mãe dele e levamos para um campeonato. Fizeram a avaliação e, nesse primeiro campeonato, ele já ficou vice-campeão brasileiro nos 400 metros.
MN – Como fica a torcida de vocês aqui assistindo as Paralimpíadas?
Celso – É uma expectativa muito grande, porque na grande maioria, a gente convive com eles. Nas competições, a gente encontra todos esses atletas, principalmente da natação e do atletismo. A gente conhece praticamente todos esses atletas que estão lá. É como se fosse uma família. Tem muitos ali que estão lá que fazem parte da vida da gente. A torcida é por todos. O Levi já colocou um telão. A gente sabe que cada um faz o seu melhor. A gente sempre deseja o melhor para os nossos próprios atletas, mas também de outras associações. A gente sempre quer o melhor de todos.