Compra bilionária se arrasta e reduz estoque de imunoglobulina do SUS
Uma disputa bilionária que se arrasta desde dezembro de 2022 derrubou o estoque de imunoglobulina do Ministério da Saúde. Feita a partir do sangue humano, a substância é usada para melhorar a imunidade de pacientes.
O ministério armazenava cerca de 50 mil frascos em maio, volume que corresponde à demanda de cerca de 30 dias no SUS (Sistema Único de Saúde). Em nota técnica assinada no mês seguinte, a pasta alertou que ficaria praticamente sem estoque a partir de julho, afetando gravemente a saúde dos usuários e acarretando “até mesmo em risco de morte”, segundo o órgão.
A pasta agora afirma que o SUS está abastecido até o fim de setembro, somando estoques do governo federal, das secretarias estaduais e de uma compra com a empresa pública Hemobrás. O ministério também diz que vai ressarcir compras de imunoglobulina feitas por estados.
A tentativa de comprar frascos para 2024 teve início no fim do governo Bolsonaro e foi destravada apenas em julho deste ano, por decisão do ministro Kassio Nunes Marques, do STF (Supremo Tribunal Federal).
O juiz derrubou acórdão do TCU (Tribunal de Contas da União) que determinava a inclusão de empresas que fornecem medicamentos não registrados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), desde que tivessem sido avaliados por alguma das principais agências reguladoras de saúde do exterior.
Os medicamentos sem registro nacional costumam ser mais baratos, argumento que motivou a decisão do TCU. Mas a compra de produto que não foi aprovado pela Anvisa é uma medida criticada pela comunidade médica e associações de pacientes.
Diretora científica da Asbai (Associação Brasileira de Alergia e Imunologia), a médica Ekaterini Simões Goudouris afirma que é preciso seguir os protocolos da Anvisa para evitar contaminações do medicamento feito à base de plasma sanguíneo.
“Existe o risco de transmissão de doenças. Essa é a nossa preocupação, e você está usando esse produto para pacientes que já têm uma condição imunológica, então é mais arriscado ainda”, disse ela.
A imunoglobulina é usada para diversas condições clínicas, incluindo HIV/Aids, imunodeficiência primária, síndrome de Guillain-Barré, para pacientes que realizaram transplante ou em manifestações da SIM-P (Síndrome Inflamatória Pediátrica pós-Covid).
Na decisão que destravou a compra do ministério, Nunes Marques considerou que é preciso seguir as regras da agência brasileira. A Anvisa só permite a distribuição ao SUS de fármaco sem registro em casos extremos, como a falta do medicamento no mercado nacional ou emergências em saúde pública.
A Anvisa concede registros aos medicamentos após avaliar estudos sobre segurança, qualidade e eficácia, além de inspecionar as instalações das farmacêuticas espalhadas em diversos países.
Depois da decisão do ministro do STF, o Ministério da Saúde tentou comprar 817 mil frascos com registro na Anvisa no fim de julho. O negócio poderia alcançar R$ 1,1 bilhão.
No entanto, o governo conseguiu ofertas dentro do preço máximo (R$ 1.400) apenas para cerca da metade desse volume (408 mil frascos). Agora, a pasta está ajustando termos dos contratos para efetivar a compra dessa quantia.
O preço por unidade na compra dos 408 mil frascos deve ficar acima do observado (cerca de R$ 1 mil) em compras recentes da Saúde pelo produto sem registro.
A parcela que deve ser adquirida ainda terá até 120 dias para chegar ao Brasil após a assinatura do contrato com as fornecedoras. A Saúde afirma que vai negociar os prazos de entrega para garantir a manutenção dos estoques.
Uma das empresas selecionadas, a ASP, que fornece imunoglobulina fabricada pela ucraniana Biopharma, afirma que tentará antecipar a entrega de 32 mil frascos para o fim de setembro. “Importante lembrar que após a chegada do produto no Brasil, os processos de liberação envolvendo alfândega, INCQS e Anvisa irão levar 30 dias”, disse a ASP.
Já a multinacional espanhola Grifols, que também vai fornecer a imunoglobulina registrada, disse que irá cumprir os termos do contrato com a Saúde, mas não respondeu se pretende antecipar a entrega dos frascos.
Em paralelo, o ministério fechou compra de 213 mil frascos da Hemobrás por R$ 1.593,86 a unidade (R$ 340,4 milhões no total), mas entrega desses lotes também será parcelada.
A empresa pública é a única autorizada a utilizar o plasma coletado no Brasil para a produção de medicamentos. Parte do processo, porém, é feito por farmacêutica privada na Europa, enquanto a fábrica nacional é construída.
Goudouris afirma que é vantajoso utilizar o produto feito com o sangue coletado no Brasil, pois o produto pode conter anticorpos adaptados a infecções mais comuns no país. “A gente ainda tem uma cobertura vacinal mais ampla do que de outros países, então sem dúvida isso é um ponto a favor”, afirmou.
Em nota, o ministério disse que passou acompanhar quinzenalmente os estoques de imunoglobulina em todo o país. A pasta também afirmou que atua para fortalecer a produção nacional do produto, “como uma ação estruturante que permitirá reduzir a vulnerabilidade do SUS e garantir a soberania nacional”.
Pelo menos desde 2018, o governo federal acumula tentativas de compras de imunoglobulina que se arrastam em disputas na Justiça e ameaçam os estoques do SUS. Nesse intervalo, o ministério fechou diversos contratos com empresas sem produto registrado no Brasil para evitar o desabastecimento ou para cumprir decisões do TCU.
A chinesa Nanjing Pharmacare foi a principal fornecedora do medicamento sem registro da Anvisa. Em nota divulgada no ano passado, o ministério disse que a empresa é global e atende ao mercado interno da China, além dos Estados Unidos, Canadá, México, Japão, Índia e outros países.
Em 2023, outra empresa que forneceu à pasta produto não registrado foi a Prime Pharma LLC, que teve cerca de 30 mil frascos interditados pela Anvisa. Isso porque os lotes avaliados em cerca de R$ 30 milhões chegaram ao Brasil sem o equipamento usado para monitorar a variação de temperatura durante o transporte. A Saúde não chegou a pagar pelo produto.
A indústria instalada no Brasil é contra a distribuição ao SUS de produtos sem registro. O setor considera que a disputa se torna desigual ao permitir a entrada de empresas que não tiveram de submeter às avaliações da Anvisa e ao controle de preços do governo, entre outras exigências nacionais.
A decisão de Nunes Marques favorável aos produtos registrados pela agência reguladora foi dada em processo movido pela farmacêutica brasileira Blau. Nesse caso, o MPF e o Ministério da Saúde também defenderam excluir as empresas que fornecem produtos sem aval da Anvisa.
A Blau chegou a participar da disputa mais recente do Ministério da Saúde, mas apresentou valores acima do procurado pelo governo e não foi selecionada.
O TCU ainda tenta reverter a decisão do STF e recolocar produtos sem registro nas licitações do Ministério da Saúde.
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POR MATEUS VARGAS