Cai verba humanitária para venezuelanos no Norte do Brasil; só 9% do pedido pelas ONGs
Agentes humanitários em Roraima e no Amazonas receberam até agora 9% do financiamento declarado como necessário para 2024 nas operações de acolhida de imigrantes venezuelanos, de acordo com a ONU. A quantia repassada até a última sexta-feira (19) foi de US$ 10 milhões (R$ 55,9 milhões).
Em 2023, a plataforma R4V, criada pelas Nações Unidas para monitorar a situação dos imigrantes, registrou que organizações de assistência migratória na região receberam 18,8% do financiamento requisitado, ou US$ 22,9 milhões (R$ 128 milhões). Embora ainda restem cinco meses até o fim de 2024, o cenário não deve ser melhor que o do ano passado.
Dentre os maiores doadores às operações no Brasil neste ano estão os Estados Unidos, a União Europeia e o Unicef, braço da ONU para a infância.
De acordo com o Departamento de Estado dos EUA, o país já destinou neste ano mais de US$ 19 bilhões (cerca de R$ 106 bilhões) para emergências. Em 2023, as contribuições chegaram a quase US$ 15 bilhões (cerca de R$ 83 bilhões).
Para o Brasil, foram destinados quase US$ 182 milhões (cerca de R$ 1 bilhão) nos últimos seis anos, dos quais US$ 45 milhões (cerca de R$ 250 milhões) para alimentação de venezuelanos em Roraima e no Amazonas. Quantias menores foram para desenvolvimento profissional, assistência familiar e fortalecimento de ONGs e agentes governamentais que atuam na região.
Em nota enviada à reportagem, o Departamento de Estado afirmou que guerras persistentes, desastres naturais mais frequentes e os efeitos residuais da pandemia enfraquecem o financiamento humanitário pelo mundo. A expectativa dos EUA, maior doador global para causas emergenciais, é que o dinheiro não acompanhe o aumento de “necessidades sem precedentes” que continuarão em 2024.
O êxodo de venezuelanos foi considerado crise humanitária em 2018 por organizações internacionais. Em média, 300 pessoas cruzam a fronteira terrestre entre Roraima e Venezuela todos os dias, de acordo com dados da ONU. A ação de acolhida é feita de forma conjunta entre as Forças Armadas, o governo e ONGs.
Segundo a plataforma R4V, até março deste ano havia 312.892 venezuelanos registrados no CadÚnico, cadastro que permite a famílias em situação de vulnerabilidade ter acesso a programas de assistência do governo, como o Bolsa Família.
Coordenador de projetos da Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (Adra) em Roraima, John Anderson diz que a queda de recursos era esperada, sobretudo em razão de novos conflitos, como as guerras na Ucrânia e em Gaza.
Anderson relata que um projeto de segurança alimentar desenvolvido pela ONG para os venezuelanos quase foi extinto pela redução de verba. Segundo ele, só continuou em 2023 e 2024 por financiamento da própria Adra.
A tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul é exemplo de como novas crises afetam o trabalho no Norte do país. Três parceiros da Adra em Roraima sinalizaram redirecionamento de recursos para o Sul. A Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) também anunciou, em maio, o envio a cidades gaúchas de itens de necessidade básica que estavam estocados em Boa Vista, na Colômbia e no Panamá.
De Manaus, a ONG Hermanitos, que ajuda a inserir os venezuelanos no mercado de trabalho, faz parcerias com empresas e o setor público. Um dos fundadores, Tulio Duarte diz entender as cobranças da sociedade civil com a redução no financiamento: “Mas estamos vivendo em um mundo com fenômenos e demandas muito grandes”.
Os impactos da diminuição de recursos não são instantâneos, mas podem levar a um retrocesso no médio e longo prazos, afirma Fernando Xavier, professor de direito internacional da Universidade Federal de Roraima. “Isso ainda não aparece visivelmente. Os trabalhos continuam acontecendo, a rotina dos abrigos permanece a mesma”.
Mais de 125.500 venezuelanos foram realocados para outros estados desde abril de 2018, distribuídos entre 1.026 municípios, de acordo com dados da ONU de janeiro deste ano. A chamada interiorização facilita a integração socioeconômica e diminui a pressão sobre serviços públicos, de acordo com a agência.
Para alguns agentes humanitários, há certo comodismo por parte do governo. “Quando se fala em crise humanitária, pensa-se só nos primeiros anos. Mas já estamos nesta há seis anos e os recursos vão deixando de chegar. São seis anos de imigração sem política pública”, diz a secretária-executiva da Cáritas Diocesana em Roraima, Orilene Pinheiro.
Em nota, a Prefeitura de Boa Vista disse que investe no acolhimento dos imigrantes. “A atuação da prefeitura tem sido, desde 2016, de acolhimento e enfrentamento dos reflexos da chegada de centenas de migrantes diariamente.” Para a administração municipal, os impactos de uma queda no financiamento são “altamente preocupantes e diversos”.
O Governo do Amazonas afirmou que faz o acolhimento, auxílio documental e presta assistência aos estrangeiros. “O governo vem trabalhando na implementação de um Centro Estadual de Referência para Atendimento de Migrantes, Refugiados e Apátridas no Estado do Amazonas, com o foco de atuar no âmbito da cidadania como proteção dessa população, além de possibilitar a articulação para o recebimento de contrapartida financeira e apoio na manutenção do local.”
O Governo de Roraima, as Prefeituras de Manaus e Pacaraima (RR), e o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome não responderam à reportagem.
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POR JOÃO PEDRO CAPOBIANCO E ISABELA ROCHA