Descriminalização geral, uso medicinal e crack são temas que Brasil ainda precisa enfrentar
Embora não encerre a polêmica, a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, acatada pela maioria dos ministros STF (Supremo Tribunal Federal), é um passo na longa fila de temas relacionados a drogas que o Brasil precisa enfrentar, segundo especialistas ouvidos pela reportagem.
Assim, a descriminalização de todas as outras drogas seria a próxima etapa. Em outros países, eles dizem, a medida não acabou com o tráfico, mas deixou de criminalizar usuários e facilitou o acesso dessas pessoas aos sistemas de saúde.
Originalmente, o julgamento no STF trataria do tema com essa abrangência, mas acabou, ao longo dos nove anos de análise na corte, sendo restrito à maconha. Quantidades que diferenciem porte para uso pessoal e tráfico devem ser debatidas nesta quarta (26), assim como outras regras.
Já questões relativas a consumo de crack e tratamento para dependentes químicos precisam ser enfrentadas em conjunto pelas áreas de assistência social e psicologia, por exemplo, e não com abstinência ou internações prolongadas.
Descriminalizar outras drogas além da maconha para o uso pessoal seria uma aposta contra o modelo vigente de repressão no Brasil, afirma Dudu Ribeiro, cofundador e diretor executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas.
“Não é num sentido de liberação do acesso ou de redução da percepção de risco sobre essas substâncias, mas de entender que tratar esse tema na esfera criminal tem sido a pior escolha do Brasil.” Os resultados, diz ele, são prisões, mortes que afetam desproporcionalmente populações negras e pobres e nenhuma promoção de saúde.
Luís Fernando Tófoli, professor de psiquiatria da Unicamp, segue a mesma linha e projeta que o passo ideal após a descriminalização das drogas seria legalizar a maconha. “Não é liberou geral, é regulamentar com a legalização, com riscos que podem ser melhor controlados do que deixando na mão do tráfico.”
É justamente na área de saúde que associações de cultivo e outros grupos, incluindo a indústria farmacêutica, têm visto crescer o uso de maconha. Mas o modelo é inviável para o tratamento nos moldes do SUS (Sistema Único de Saúde), afirma o pesquisador Lauro Pontes, que há dez anos estuda os usos terapêuticos da droga.
“Hoje o acesso [para fins medicinais] está reduzido a esses processos: importação via Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] e compra na farmácia ou de associações de pacientes.” O problema, ele ressalva, é que as duas primeiras alternativas precisam ser importadas. A terceira é um produto artesanal, fitoterápico.
O desafio é levar o tratamento com maconha medicinal para o sistema público de saúde. Pontes, hoje aluno de pós-doutorado no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, foi consultor independente em um projeto sobre esse tipo de uso na Prefeitura de Armação dos Búzios, no litoral do Rio de Janeiro.
Na época, em 2021, o valor anual estimado para o tratamento de autismo e epilepsia refratária de 400 crianças que já estavam sendo atendidas na rede pública era de R$ 6 milhões. “Extrapole isso para São Paulo, vai dar bilhão.”
Para além da maconha, o tratamento para drogas como crack, cocaína, heroína e mesmo drogas sintéticas, como as drogas K, deveria apostar em outras soluções que não o confinamento e a abstinência.
É o que diz Nathália Oliveira, também diretora executiva da Iniciativa Negra e coordenadora da comissão que trata de legislação e normas no Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas), grupo sob a coordenação do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
“As políticas de atenção e tratamento são orientadas pela premissa do cuidado em liberdade”, afirma.
Como exemplo de estratégias bem-sucedidas de redução de danos ela cita o programa De Braços Abertos, que oferecia moradia, assistência social e trabalho em São Paulo, e o Corra para o Abraço, programa da Bahia que dá acolhimento e auxílio para usuários de drogas em processos judiciais.
O psicólogo Bruno Logan, que trabalhou por nove anos com redução de danos entre populações vulneráveis, inclusive na cracolândia de São Paulo, descarta internações compulsórias como forma de tratamento.
Para ele, a abstinência e o confinamento, métodos usados em comunidades terapêuticas, que ele critica, não preparam o dependente químico para lidar com autonomia contra a oferta, que será uma constante na vida em sociedade. “O tratamento precisa ser em liberdade para que a pessoa aprenda a desenvolver esse mecanismo e possa recusar.”
Os especialistas apontam que, na perspectiva de tratar o uso de drogas como problema de saúde, é preciso reforçar os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), especialmente os de álcool e drogas, que integram a rede de tratamento em liberdade. Internações, dizem, podem resolver problemas pontuais como surtos ou quadros clínicos (contaminações ou doenças, por exemplo).
Além das investigações sobre os fatores pessoais e sociais que levam ao uso de substâncias, os especialistas apontam que a informação é um dos principais pilares para lidar com os efeitos do uso de drogas, considerando que elas sejam descriminalizadas.
Segundo Fernando Beserra, psicólogo e coordenador da Associação Psicodélica do Brasil, uma medida que o grupo adota é ter coletivos de redução de danos em áreas de festas, com testes de drogas e informações aos usuários. “Dá para saber se tem adulterantes, se tem a substância que a pessoa quer usar. São mais de 15 anos fazendo essas testagens e acolhendo pessoas que tiveram crises por causa do uso.”
Beserra também cita espaços de uso público, como os que existem em Portugal e Holanda, que auxiliam os governos com a notificação de novos tipos de droga que chegam ao mercado.
Para Tófoli, da Unicamp, descriminalizar incentiva o usuário de drogas a acessar políticas de saúde. “O tráfico continua existindo, mas você aproxima esse usuário do sistema de saúde porque o comportamento dele não é mais crime.”
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POR LUCAS LACERDA