Agricultores do RS listam perdas e lembram ‘epopeia’ com gerador de energia
Era noite de 30 de abril em Flores da Cunha, a 150 quilômetros de Porto Alegre. Chovia muito no sítio de Maria Pandolfi, voltado à plantação de frutas e hortaliças.
Ela morava com uma das três filhas, Bruna, e o genro, Tiago, em uma casa assobradada, em meio à mata atlântica, na serra gaúcha. Bruna é servidora pública e trabalhava em Farroupilha, mas a mãe e o marido vendiam a produção nas feiras da região.
Na madrugada de 1º de maio, Tiago teve um sonho agitado e acordou assustado. Viu uma espécie de cemitério e uma pessoa lhe dizendo apenas “corre!”
Contou o sonho à mulher na manhã seguinte, que continuava muito chuvosa. Do quarto onde estavam, ouviram um forte estrondo. Tiago se lembrou instintivamente do sonho e repetiu o apelo a Bruna: “Corre!”
Cada um pegou o celular e Tiago levou também a Bíblia, quando pularam da janela do quarto, de uma altura de quase quatro metros.
Parte do morro ao lado da casa desmoronou e devastou todo o pomar e a horta, destruindo completamente a residência da família. Maria Pandolfi, que estava no porão da casa, ouviu o estrondo e também se salvou.
O desastre climático no Rio Grande do Sul, onde as fortes chuvas provocaram cheias de rios e desmoronamento de encostas nas duas últimas semanas, gerou um estado de calamidade pública e atingiu em cheio pequenos produtores rurais.
Muitos descendentes de imigrantes italianos vivem na serra gaúcha com a produção de uvas, frutas e hortaliças. A região sofreu com desmoronamentos que bloquearam rodovias, destruíram plantações e interromperam o fornecimento de energia.
Áreas como o Vale do Taquari e a Grande Porto Alegre também ficaram inundadas. Em Eldorado do Sul, na região metropolitana, o Assentamento Integração Gaúcha, responsável pela produção anual de 400 mil sacas de arroz orgânico, está debaixo d’água.
Segundo cálculos da CNM (Confederação Nacional de Municípios) atualizados até sexta (10), os prejuízos dos agricultores no estado gaúcho já somavam R$ 1,1 bilhão. Outros R$ 61 milhões em perdas atingiam a pecuária.
‘TENHO MEDO DE FAZER A CONTA’
Márcio Concli, 44, faz parte da estatística. A sua produção foi praticamente toda perdida: das 20 mil caixas de cítricos que iria colher até setembro, como laranja e bergamota, só conseguiu retirar 70 caixas antes de começarem as chuvas em Bento Gonçalves.
“Tenho medo de fazer conta”, diz Concli, que também sofreu com a falta de energia elétrica em toda a região.
Ele decidiu pagar R$ 8.000 em um gerador para abastecer não só o próprio sítio, como garantir a refrigeração da comida dos agricultores vizinhos, que passaram quatro dias no escuro.
Um cunhado que trouxe o aparelho veio de Veranópolis até certo ponto do caminho. Mas, como as estradas estavam intransitáveis, o jeito foi se unir aos vizinhos para percorrer, a pé, cinco quilômetros, equilibrando como podiam um gerador que pesava cerca de 250 quilos.
“No dia 5 de maio, saímos às 8h da manhã e só voltamos às 6h da tarde”, diz Concli, que, diferentemente de alguns vizinhos, decidiu ficar na propriedade rural para cuidar dos animais.
Já o vizinho de Concli, Cedenir Postal, 49, deixou a sua propriedade no começo da tarde de quinta-feira (9). “Minhas filhas, de 14 e 23 nos, estavam ficando desesperadas, por ter voltado a chover, nem dormiam”, diz Postal, que produz hortaliças em Bento Gonçalves.
Um helicóptero do Corpo de Bombeiros o levou para a cidade com a mulher e as filhas, para ficar na casa de cunhados.
Emocionado, ele se sente impotente diante da tragédia. Sua casa não foi atingida, mas ele perdeu os 5.000 pés plantados no mês passado e sabe que as suas economias não vão durar muito. “Quero voltar, mas não sei quando.”
‘EVITO PENSAR NO AMANHÃ’
Já Márcia Riva, que vivia em um assentamento em Eldorado do Sul, cidade da Grande Porto Alegre que ficou completamente inundada, está sem perspectivas.
“Eu evito pensar no dia de amanhã”, diz ela, que trabalhava com irmãos e sobrinhos na produção de arroz orgânicos e cogumelos no Integração Gaúcha, uma união de cooperativas de assentados da reforma agrária e agricultores familiares.
Quando as fortes chuvas chegaram ao local, que reúne 72 famílias, eles já haviam colhido 50% da safra, mas os produtos ainda não haviam sido beneficiados. “Perdemos tudo”, diz ela.
No início da noite do dia 2, quando a água chegou à porta das casas do assentamento, a família começou a levantar os móveis, na tentativa de minimizar os prejuízos. Na madrugada, a água chegou à cintura e eles ficaram ilhados no telhado do galpão, à espera de ajuda.
Márcia reclama do descaso do poder público com políticas ambientais. “A reconstrução total da cidade vai sair muito mais cara do que a preservação.”
A família Pandolfi, de Flores da Cunha, não quer mais voltar à vida no campo, ficou traumatizada. Bruna, o marido e a mãe estão em Farroupilha, em uma casa que está sendo adquirida com as próprias economias e a ajuda de todos os familiares. “Nunca mais conseguiria dormir em paz”, diz Maria, que passou os últimos 33 anos na propriedade.
No último Natal, havia perdido o marido, Eloi, 79, vítima de complicações de uma cirurgia no joelho.
Uma das irmãs de Bruna, Patrícia, voltou no dia 6 ao sítio e gravou vídeos dos escombros. A casa, o trator e o carro da família ficaram completamente destruídos. Encontrou com a mãe alguns pertences: álbuns da família e as imagens de um cristo protetor e de Nossa Senhora de Caravaggio.
“O que a gente viveu foi um milagre”, diz Bruna. “Até os bichinhos saíram com vida, dois cachorros e seis galinhas. Estamos agradecidos, mas desolados com toda essa tragédia. Agora é ajudar quem precisa e reconstruir a vida.”
‘PLANTAÇÃO VIROU EM NADA’
Em Nova Bréscia (a cerca de 160 km de Porto Alegre), no Vale do Taquari, a fúria de uma inundação devastou hortaliças do agricultor Adilar Lorenzon, 61. “Nossa plantação era bem grande, mas virou em nada”, afirma.
“Choveu demais aqui. Veio muita água. Tinha plantação de eucalipto, mato, desceu tudo junto. Tenho 61 anos, nunca tinha existido isso. Nem parecido.”
A lavoura dele fica em uma área para 12 hectares de plantio. Lorenzon projeta que somente uma fatia de 10% da produção pode ser salva.
“Onde a água não levou embora parece que passaram uma água quente em cima da plantação. Queimou com o sol [após as chuvas]”, lamenta.
Lorenzon produz alimentos como couve-flor, repolho, beterraba e rabanete. O que costuma ser colhido vai para a Ceasa-RS, tradicional ponto de venda em Porto Alegre de produtos agrícolas.
O empreendimento comercial tampouco escapou das enchentes de proporções históricas. Com o alagamento, a Ceasa-RS passou a operar de maneira provisória em Gravataí, na Grande Porto Alegre.
Nova Bréscia fica em uma área mais montanhosa do Vale do Taquari, o que não impediu o registro de prejuízos. A cidade é chamada de “terra dos churrasqueiros” por ser a origem de muitos gaúchos que levam churrascarias para outros locais do estado e do país.
Para Lorenzon, além das perdas diretas na plantação, também houve danos da enxurrada a maquinário e insumos, incluindo sementes, adubo, caixas plásticas e embalagens.
O produtor diz que ainda não colocou “na ponta da caneta” o tamanho dos prejuízos. Se o tempo melhorar, Lorenzon espera que seja possível recuperar, em quatro meses, um nível de produção próximo a 70% do registrado antes do desastre, já que o ciclo de hortifrúti é mais rápido do que o de outras culturas.
“Mas fica aquele medo de investir bastante. É difícil na roça. São poucas pessoas, nosso serviço é familiar”, diz.