Infância pobre fez com que Amauri alimentasse os carentes
Amauri Gonzaga é um mariliense que se dedica ao trabalho solidário aos que mais necessitam em Marília. Ele veio de uma família carente, sustentado pela mãe, que trabalhava como empregada doméstica para alimentar nove filhos. A lembrança da infância pobre o motiva a trabalhar para ajudar aqueles que não possuem condições para ter um prato de comida todos os dias em casa.
Quando era criança, Amauri Gonzaga morou na Vila Coimbra e trabalhava cuidando de carros em frente ao cemitério. Ele também lavava túmulos. O pouco que conseguia arrecadar ajudava a mãe no sustento da família, já que o pai abandonou a casa por causa do vício na bebida alcoólica.
Gonzaga é o responsável pela Organização Não Governamental (ONG) “Alimento Sim, Fome Não”, que prepara comida para pessoas necessitadas em Marília. Os trabalhos tiveram início no Jardim Nacional, na zona sul, mas agora o projeto social também é desenvolvido no Jardim Maracá, região norte da cidade.
Durante a pandemia da Covid-19, Amauri ficou vários dias em uma cama, sem forças para se levantar. Ele achou que não sobreviveria, mas superou a doença e retomou as atividades com a ONG. Hoje com muita saúde, concedeu uma entrevista para o Marília Notícia, contando um pouco de sua história.
***
MN – Como foi sua infância aqui em Marília?
Amauri Gonzaga – Minha infância foi ali na Vila Coimbra. Morei ali até uns 10 ou 11 anos. Eu lembro que ia para a escola e depois, na tarde, eu cuidava de carros em frente ao Cemitério da Saudade. Algumas vezes eu também levava balde, vassoura e lavava túmulos. Isso era para manter a casa junto com a minha mãe, pois nessa época meu pai já tinha abandonado a minha família. Ele largou a minha família e eu comecei a trabalhar bem cedo.
MN – Vocês eram em quantos na sua casa?
Amauri Gonzaga – Éramos minha mãe, meus oito irmãos e eu. Desde cedo eu tive que trabalhar para poder ajudar minha mãe. Ela fazia a faxina fora de casa e nos mandava para a escola. Eu ficava com meus irmãos, mas a cabeça estava em trabalhar e ajudar. Nossa família era bem grande, só que perdemos o nosso pai para a bebida. Nessa época, a gente não tinha muita estrutura. De noite eu e três irmãos batíamos nas portas das casas, pedindo algum alimento.
MN – As pessoas atendiam bem você?
Amauri Gonzaga – Naquela época já tinha concorrência. Não tinha só eu. Tinha outros moleques lá, outras crianças também, que faziam o mesmo que eu fazia. Só que as pessoas tinham um coração muito mais aberto e ajudavam mais. Quando a família vinha no cemitério, eu já ia acompanhando, nem pedia nada. Acompanhava até o túmulo. Chegava ao túmulo e perguntava se eu podia lavar o túmulo. Sempre dava certo.
MN – Vocês passaram dificuldades nessa época?
Amauri Gonzaga – Passamos bastante dificuldade. Tinha dia que não tinha alimento para colocar na mesa. Tinha dia que minha mãe fazia a faxina e chegava a nossa casa com um quilo de arroz, mas imagina fazer comida para nove filhos. Não dava para nada. Muitas vezes minha mãe dormia sem comer. Eu via isso. Ela dormia sem comer. Nós comíamos, mas ela não comia nada. Eu vi isso várias vezes e isso me marcou muito. É por isso que eu tenho essa força hoje.
MN – Passar toda essa dificuldade te motivou a trabalhar hoje para alimentar as pessoas?
Amauri Gonzaga – É isso mesmo, porque naquela época que a gente era criança, mas tenho essa memória e guardei tudo isso no meu coração. Eu falei para Deus que um dia eu seria uma pessoa melhor e teria muitos amigos para me ajudar e ajudarmos quem mais precisa. Nessa época, eu queria fazer mais para minha mãe e meus irmãos, mas eu não conseguia. Essa vivência de passar dificuldade, de ver minha mãe dormir sem jantar, fez com que eu quisesse ajudar as outras pessoas.
MN – Vocês passavam dificuldades, mas outras pessoas que você conhecia também passavam por isso?
Amauri Gonzaga – Vi meus vizinhos que passavam necessidade. Vi outras pessoas que passavam com carrinho para pegar papelão e outros materiais recicláveis. Eram situações terríveis também. Fui guardando tudo aquilo e Deus me deu essa força e essas ideias.
MN – Quais foram os trabalhos que você fez antes de iniciar com a ONG?
Amauri Gonzaga – Nessa época eu sempre ia até o Morro do Querosene, montava em um caminhão e ia com um monte de gente para as roças. Ia bater amendoim, limpar o café. Eu e a minha mãe. Depois entrei na Marifreios e então comecei a trabalhar com divulgação e propaganda com carro de som, que faço até hoje.
MN – Como surgiu a ideia de ajudar essas pessoas?
Amauri Gonzaga – Eu queria trabalhar na área de alimentação mesmo e de cuidar de pessoas. Queria matar a fome de quem precisava. Eu passei por isso e queria ajudar de alguma forma. Então comecei o trabalho por volta de 2001. A ONG para mim é amor mesmo. No começo eu queria fazer um trabalho com cesta básica. E eu não tinha condições de fazer isso. Não tinha ação, não tinha nada. Conheci algumas pessoas, um grupo chamado “Deu Branco”, o Geraldo Carlos, que imitava o Roberto Carlos e um humorista que era conhecido como “Cala a Boca”. Formamos uma equipe de pessoas para fazer o projeto “Comunidade Solidária Alimentos sim, Fome não”. Eu fazia a carta com o próprio punho. Escrevia para o diretor da escola e ele me emprestava o espaço. As pessoas iam para ver os músicos e doavam aquele alimento. Eu lembro que eu fiz acho que 28 apresentações. Nosso intuito naquele evento era realmente arrecadar alimento.
MN – Quem vocês ajudavam com esse alimento arrecadado?
Amauri Gonzaga – A gente ajudava entidades. A primeira que eu alcancei lá atrás foi a “Amor de Mãe”. Na época, a gente arrecadou mais de uma tonelada. Foi muito gratificante. Eu estava fazendo o que era o meu sonho.
MN – Quando começaram a preparar a comida?
Amauri Gonzaga – Começou lá na zona oeste, mas eu tive um sonho de vir morar no Nova Marília. Vindo para cá eu via as pessoas catando reciclado e quis ajudar. Falei para minha esposa que teríamos que fazer a comida já pronta para as pessoas. Começamos na área de casa. Eu divulguei sobre a comida e quando a gente abriu o portão, tinha 85 pessoas, apenas no primeiro dia. Todo mundo sentado no portão da minha casa.
MN – Todos comeram nesse primeiro dia?
Amauri Gonzaga – Quando faltavam sete pessoas, a comida acabou. Minha esposa tinha um coração meio fechado nessa época para essas coisas, mas quando isso aconteceu, ela foi para o fundo de casa, pegou as coisas que estavam na nossa geladeira e terminou de fazer a comida. Todo mundo comeu e desde então não paramos mais.
MN – Você recebeu apoio para colocar sua ideia de alimentar as pessoas em prática?
Amauri Gonzaga – Recebi apoio da Natasha Kawakami, do supermercado Kawakami; e do seu Isaías Chaves, do Lanchero, que infelizmente faleceu recentemente. Ele veio conhecer o projeto e viu as pessoas comendo na calçada e disse que não podia fazer aquilo. Precisava de um espaço para alimentar essas pessoas. Ele alugou o espaço para a gente e a empresa dele até hoje paga esse aluguel. Quando viu que eu usava meu carro para levar os produtos que recebíamos, doou uma Kombi para a nossa ONG. Ele também comprou um terreno para a nossa ONG.
MN – Mais empresas apoiam o trabalho?
Amauri Gonzaga – Recentemente recebemos uma doação do Tauste, de 100 cadeiras e 25 mesas, por meio do Guilherme Cunha. A Marilan também nos ajuda com muitos biscoitos. A Menin Engenharia sempre paga o conserto da Kombi quando ela apresenta algum problema. A Grespan doa 800 pães por mês. O nosso contador da Absoluto também cuida de toda a papelada da ONG. A WebLine está ajudando a gente com gás. A Graphite doa a carne para a gente. A Replan fica na retaguarda. Toda vez que eu preciso de alguma coisa, eu ligo pra eles. A Mademar disponibiliza mil recipientes de marmitas por mês. O Kawakami nos doa fardos de arroz e feijão. A Teciê também é uma empresa que fica mais na retaguarda.
MN – Já tem um tempo que vocês estão lá no Maracá também?
Amauri Gonzaga – No Maracá é uma história de religião. O meu pastor começou a fazer um trabalho lá com famílias, evangelizando. Nesse negócio de evangelizar, começaram a aparecer umas famílias procurando ele, pois não tinham comida em casa. O pastor me chamou, explicou a situação e comecei a levar um leite para doar lá. Então comecei a reservar duas caixas de pão, bolo e fui levando pra lá. Isso foi crescendo e eu peguei uma área que estava abandonada lá, para tocar o projeto.
MN – E como foi na pandemia da Covid-19?
Amauri Gonzaga – Na pandemia foi assim. Eu vi que muitas entidades abaixaram as portas. Pelo que eu lembro agora, ficaram os “Amigos do Bar” e nós. As pessoas entenderam que tinham que ajudar a gente. Veio gente aqui na porta da ONG trazer roupa. Isso, as pessoas que conseguiam sair de casa usando máscara. As doações aumentaram bastante, mas também cresceu o número de gente necessitando disso. O que aconteceu aqui foi que a gente teve que criar um caderno emergencial. Eu anotava os dados da pessoa, o telefone e depois procurávamos essa pessoa para saber como estavam.
MN – Você contraiu a doença?
Amauri Gonzaga – Sim. Foi bem difícil. Eu adquiri a enfermidade e a minha esposa também. Eu fiquei dez dias sem me mexer praticamente. Quase não saía da cama. Fiquei muito ruim, mas não me internei. Eu conversei bastante com meu filho e ele queria me internar, mas eu falei que não. Consegui convencer ele, mas pensei que eu ia embora daqui mesmo. Um dia decidi sair de casa. Peguei o carro e vim aqui, com máscara e tudo. Quando vi a mesa toda arrumada e as pessoas comendo, foi a coisa mais linda. A gente conseguiu vencer. Conseguimos passar pela pandemia e estamos aí.
MN – Pessoas em condições melhores também já precisaram de ajuda?
Amauri Gonzaga – Um dia, na minha casa ainda, quando a gente servia os alimentos lá, parou um carro muito bonito do outro lado da rua. Os voluntários viram uma mulher e pensaram que ia trazer alguma doação, mas me pediu três marmitas. Eu arrumei as marmitas e ela pediu para irmos até sua casa no dia seguinte. Ela estava com sete parcelas atrasadas do carro, o marido estava desempregado e o filho era especial. Deus é maravilhoso. Naquele dia eu fiz a coisa certa. Eu não quis olhar para a pessoa, a gente não pode olhar para a pessoa. Ninguém sabe a realidade.
MN – E o que te motiva a continuar com o trabalho todos os dias com a ONG?
Amauri Gonzaga – São as famílias. As famílias que me dão força. O que me motiva a continuar são essas famílias que precisam tanto de ajuda.
Faça parte do nosso grupo de WhatsApp. Entre aqui!