‘Abraço os desafios’, diz docente que superou a perda da visão para transformar realidades
A professora Maria Rosa Delmasso Rodrigues, de 58 anos, que é moradora de Marília, perdeu a visão em 1993 e precisou enfrentar uma realidade complemente desconhecida para conquistar sua independência, continuar a se desenvolver profissionalmente e criar o filho, que na época tinha apenas um ano e cinco meses.
A paixão pelo magistério, fé inabalável e força de vontade a levam por caminhos onde encontrou o conhecimento, que já foi usado para ajudar centenas de pessoas pelo Brasil e principalmente em Marília.
Atualmente, Maria Rosa atua em atendimento na Associação dos Deficientes Visuais de Marília (Adevimari), que ela mesma fundou assim que perdeu a visão, e também no Centro Escola Municipal de Atendimento Educacional Especializado (Cemaee) de Marília.
Seu trajeto na educação teve início como professora em 1987. Ela passou em concurso público para direção escolar na mesma semana que operou os olhos pela primeira vez, em 1993. Foram longos seis meses com média de uma operação a cada 30 dias . No fim, escutou do médico o duro diagnóstico de que não mais voltaria a enxergar.
A professora foi então impedida pela Prefeitura da época de assumir o cargo de direção e ainda foi aposentada compulsoriamente por invalidez contra a própria vontade. Mas o que acreditou ser o fim de tudo, um esforço jogado fora, acabou se tornando o começo de uma carreira brilhante dedica às pessoas que ela passou a compreender.
Nesta entrevista, ao Marília Notícia, Maria contou sobre sua transição para educação de crianças, adolescentes e adultos com deficiência visual, também sobre a transformação dessas pessoas atendidas em projetos que participa e a conscientização de quem vê a deficiência como barreira instransponível e tutelada.
Na próxima quarta-feira (13) é lembrado o Dia Nacional do Cego, que tem como objetivo conscientizar a sociedade para questões importantes como preconceito de discriminação.
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MN– Como foi ficar cega?
MARIA ROSA – O mais difícil foi não poder ver mais o sorriso e o olhar do meu filho. Como eu era solteira e morava com meus pais, foi tranquilo no aspecto de criação dele, e eu assumi rápido. Quando ele completou cinco anos me mudei para minha casa, aqui em Marília.
MN – Como foi sua adaptação para uma vida sem a visão?
MARIA ROSA – Depende muito da personalidade. Se o deficiente visual antes da sua perda já tem uma certa autonomia, isso é um ganho para ele. Dentro da minha casa era assim: eu perguntava o que minha mãe iria fazer para o almoço, então cortava os legumes antes dela. Foi aí que começaram a perceber que era possível. Eu comecei a vencer o preconceito na luta diária. A primeira vez que eu andei sozinha na rua eu disse que tinha um amigo esperando no ponto de ônibus. É preciso quebrar barreiras dentro de casa, primeiro, porque se não vencer em casa, não vai conseguir na rua.
MN – Depois que foi impedida de trabalhar, o que fez?
MARIA ROSA – Voltei para a faculdade, na Unesp de Marília. Aprendi a ler em braile, fiz curso de orientação e mobilidade, para aprender andar com bengala, e também um curso de educação voltado aos professores para ensinarem deficientes visuais. Na época, eu ainda não pensava em dar aula, eu só queria ver o que estavam ensinando porque percebia que existiam muitos conceitos errados na educação. Também participei do primeiro curso de informática para pessoas cegas no Brasil, realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1995.
MN – Quando realmente começou o seu trabalho na educação para cegos?
MARIA ROSA – Eu sempre tive muitos sonhos que se realizaram. Sem nunca ter ouvido falar, sonhei com Itajaí, no litoral catarinense, e tive a confirmação por um amigo que havia sonhado que me via me mudando para a praia. Em 1999, eu fui para lá sem pensar em trabalho. Lá, conheci a Associação de Deficientes Visuais de Itajaí e Região (Advir), que estava para fechar as portas por falta de um profissional capacitado, justamente a minha formação. Por isso, fui contratada.
MN – O que havia de diferente entre Santa Catarina e São Paulo, na época?
MARIA ROSA – Era diferente de Marilia porque já tinha pessoas cegas atuando no mercado de trabalho, tinha um desenvolvimento maior na inclusão. Aprendi a trabalhar com as crianças na prática, já que eu tinha só o conhecimento teórico. Como a Advir tinha convênio com o Estado, participei de muitos congressos e cursos. Foi uma bagagem muito grande. Depois fui presidente da associação e fundei outros projetos na cidade.
MN – Como fez para voltar à Marília?
MARIA ROSA – Eu passei por duas cidades do litoral paulista, onde trabalhei na educação infantil e tive um projeto de informática com parceria da Petrobrás. Quando vinha para Marília eu perguntava porque não me queriam. Já havia lei de acessibilidade e cotas, mas eu não precisava, pois trabalhava como qualquer outra funcionária. Foi só em 2009 que um outro procurador municipal viu a situação e queria fazer diferente. O que mais me frustrava era ter um rótulo de invalida, sendo que eu trabalhava, desenvolvendo projetos, mas aqui em Marília era um absurdo. Em 2010 voltei a morar aqui e, em 2011, deu certo e eu assumi a direção de uma escola municipal.
MN – Teve resistência de colegas da profissão ou pais?
MARIA ROSA – É uma população que nunca viu uma diretora cega. Antes, talvez eles pensassem que fosse uma diretora que passava o dia sentada na mesa, mas eu tive minha atuação como qualquer diretora. Até perguntaram para uma professora se eu era mesmo parada. Ela me defendeu, porque era eu que abria o portão e recebia os alunos, fazia documentos e mandava para escola toda. Essa quebra de preconceito só é possível se a pessoa com deficiência estiver inseria no meio social e haver uma troca de experiências.
MN – Porque deixou a direção para atuar diretamente com o público cego e de visão reduzida?
MARIA ROSA – Em maio deste ano comecei a atuar diretamente com pessoas de deficiência visual. Eu precisava de mais tempo para me dedicar ao mestrado e pedi à Secretaria da Educação para iniciar um projeto, que foi aceito. Além disso, sofri tanto em Marília e eu queria auxiliar pessoas a acreditarem em si mesmas. Porque não adianta dizer que a pessoa é capaz e esperar que ela tenha a autonomia que eu tenho, porque ela não viveu as mesmas experiências. Ela precisa ter os meios para aprender e o meu trabalho é ajudar essas pessoas a perderem o medo e a criarem técnicas para terem autonomia, para cozinhar, viajar, andar, estudar, trabalhar e mais.
MN – Como é o ensino nos projetos em que leciona?
MARIA ROSA – Nós criamos os projetos para trabalhar a autonomia, valorização da vida e despertar talentos. Temos rodas de conversa, coral, trabalho de instrumentos musicais, filme acessível e também dou aula na rua. Temos uma roda de conversa com mulheres com deficiência visual em que decidi que nós mesmas faríamos o café, já que havia mulheres que nunca tinham quebrado um ovo.
Também vou na casa da pessoa, conheço seu espaço, suas dificuldades e trabalho sua liberdade de ir e vir. Quando essas pessoas estão no meio social, convivendo, elas mesmas buscam outras atividades. Por exemplo, todo final de mês a gente sai com as crianças e vamos em um lanchonete para elas terem esse contato, esse comportamento social de pedir o que quer comer, até coisas simples, como ensinar pegar um guardanapo. Faz o que a vida dela seja ativa, porque alguns pais não conseguem entender essa necessidade de andar sozinho.
MN – As pessoas não entendem que o cego tem vontades, é isso?
MARIA ROSA – A pessoa ficou cega, mas isso não quer dizer perdeu sua capacidade de querer. Não é isto que vai modificar seus gostos, suas vontades. Eu percebi que as pessoas não tinham esse entendimento. Essa sensação de dominação me incomodava muito.
Às vezes, a pessoa não tem conhecimento. Você está na rua e ela te pega de qualquer jeito na travessia. Eu poderia estar só esperando alguém e ela já sai pegando você e atravessando. Até dizer não, já está lá no meio da rua. É engraçado. Por que não perguntar se eu estou precisando de ajuda?
MN – O que é necessário para uma pessoa com deficiência visual atingir sua independência?
MARIA ROSA – A vida é assim: se você tem um obstáculo na sua frente, você precisa ir lá e tirar. Não adianta contornar, porque lá na frente vai te dar problema de novo. Quando eu saio na rua, por exemplo, há muitos obstáculos que são perigos, mas você precisa pensar se prefere viver morta, sem riscos ou prefere viver de verdade. Eu abraço os desafios, eu quero ter vida, e não ficar dentro de quatro paredes esperando que as coisas se mudem.
Então, se eu estou a pé na rua e me machuco com um galho de uma árvore, eu vou conhecendo o local e conhecendo as pessoas. Eu sou cega, mas sei que as pessoas me vêm passando. Depois de um tempo, eu bato na porta da casa onde tem o galho atrapalhando e pergunto se a pessoa pode resolver o problema. Essas questões de negligência implicam diretamente na nossa vida física, o mesmo vale para quem deixa o portão aberto ou moto na calçada.
MN – Agir diretamente é único jeito de abrir os olhos da sociedade para questões de inclusão?
MARIA ROSA – O governo e a sociedade têm que promover eventos onde todos participem juntos, com igualdade. O que mudou bastante foi quando as pessoas com deficiências foram inseridas junto com todos no mesmo espaço social, seja nas escolas ou trabalhos. Há diferença entre só ouvir falar e conviver, porque no convivo as pessoas aprendem umas com as outras. Eu aprendo todos os dias, inclusive com outras pessoas cegas.
SERVIÇO
O atendimento do Centro Escola Municipal de Atendimento Educacional Especializado (Cemaee) é realizado em salas do Museu de Paleontologia de Marília.
Mais informações pode ser consultadas pelo telefone (14) 3433-2111. Maria Rosa também disponibiliza seu contato pelo telefone (21) 99796-3759.
Já o atendimento no grupo de mulheres é realizado no Paróquia Nossa Senhora de Fátima, no Bairro Fragata, zona oeste de Marília.