“Muita gente falava que eu não seria nada na vida”, conta Daniel Martins
Celeiro de grandes nomes no esporte, Marília sempre revelou grandes talentos no atletismo, que despontaram para o Brasil e o mundo. Um dos mais vitoriosos, sem dúvida nenhuma, é Daniel Martins.
O mariliense é tricampeão mundial dos 400 metros, recordista mundial com incríveis 46s86 e medalhista de ouro paralímpico na categoria T20, para atletas que têm dificuldade em reter informações e em aplicar planos de corrida e táticas.
Tudo começou de forma despretensiosa, como uma brincadeira, na antiga Casa do Pequeno Cidadão. Muito veloz, Daniel Martins chamou a atenção e foi convidado para treinar no estádio Pedro Sola. De lá para cá, seu nome se destacou como um dos mais talentosos e rápidos atletas brasileiros, atingindo feitos incríveis no esporte.
Com 27 anos, Daniel Martins ainda acredita que pode participar de pelo menos mais dois ciclos paralímpicos. Para isso, ele se dedica aos treinos e mantém o foco na preparação para as competições, mas nunca deixando de lado o sorriso e o bom humor, características que o ajudam todos os dias.
O atleta da Associação Mariliense de Esportes Inclusivos (Amei), que hoje é patrocinado por uma das maiores fornecedores de material esportivo do mundo, atendeu a equipe do Marília Notícia no estádio Pedro Sola, em uma pequena arquibancada ao lado da pista de atletismo, contando sua história e trajetória de vida no esporte.
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MN – Como foi o seu início no esporte?
Daniel Martins – O início foi a partir de uma brincadeira. Antigamente, tinha a Casa do Pequeno Cidadão aqui em Marília, ali na rua Sergipe. Tinha uns jogos entre as casas e vinha o pessoal do Paraná e de Minas Gerais. Em 2008, a gente competiu aqui em Marília. Eram várias modalidades e eu me destaquei. Em 2010, teve a mesma competição, mas em Minas Gerais. Novamente eu me destaquei lá e comecei a treinar uma vez por semana aqui no Pedro Sola.
MN – Você praticava outra atividade nessa época?
Daniel Martins – Eu fazia capoeira e o meu professor perguntou se eu tinha certeza se queria fazer atletismo, mas aqui eles serviam um lanche depois do treino e eu vinha por isso. Foi quando o Alecsandro Ramos, o ‘Lecão’, me convidou para fazer parte da equipe.
MN – Você estudava em qual escola aqui de Marília?
Daniel Martins – Da 5ª série até o 2º ano eu estudei no Amilcare Mattei. Morava perto do Terminal, mas meus amigos eram ali da Vila Altaneira. No 3º ano fui para a escola Waldemar Moniz da Rocha Barros.
MN – Você sonhava em ser atleta?
Daniel Martins – Eu tinha essa vontade de ser atleta. Tentei no futebol e outras modalidades, só que não deu certo. Decidi abrir mão da capoeira e de lá para cá foram muitas vitórias. Em 2010, eu e o meu irmão começamos aqui.
MN – Existia uma competição entre vocês?
Daniel Martins – Meu irmão já vinha treinando. A gente sempre brincava de esconde-esconde. Hoje eu acho que a molecada não brinca mais, mas eu sempre corria mais, até que ele começou a correr mais do que eu. Não podia deixar isso acontecer. Não queria perder para ele e passei a me dedicar muito nisso.
MN – Até então você não disputava competições paralímpicas?
Daniel Martins – Em 2012, eu tive uma crise de epilepsia, vindo aqui para o estádio Pedro Sola. Eu desmaiei e tive uma convulsão. Depois de uma jornada de exames, foi detectada a deficiência intelectual. Eu já vinha apresentando dificuldades de aprendizagem na escola. Eu tenho TDAH e tenho hiperatividade, então não consigo ficar muito quieto no mesmo lugar. Foi quando surgiu o convite do Celso para entrar na Amei.
MN – Qual foi sua reação?
Daniel Martins – De início eu tinha aquele preconceito. Não queria. Na minha categoria, o povo fala que a gente é ‘louco’. E nisso eu falei “não vou e não vou”, mas ainda bem que o Celso da Amei ficou aqui esperando um pouquinho. Caso contrário, se tivesse ido embora, eu tinha perdido, mas Graças a Deus eu aceitei o convite. Foi o convite que eu não tenho arrependimento de ter aceitado.
MN – Isso foi ainda em 2012?
Daniel Martins – Em 2012, eu comecei a competir pela Amei e, em 2013, consegui bater o recorde brasileiro da competição. Em 2015, eu entrei para a seleção de jovens do Brasil e a responsabilidade aumentou. Eu tinha 18 anos e após as primeiras semanas de treino saiu a convocação para o Open e já estava integrando a seleção brasileira. Foi quando surgiu a oportunidade de subir para a seleção adulta, que iria para o mundial.
MN – E como foi chegar à seleção adulta?
Daniel Martins – Nem tinha aproveitado a seleção de jovens e já subi para o adulto. Fui o primeiro deficiente intelectual a ser campeão mundial, em Doha, no Catar, em 2015. Repeti o ouro no Mundial de 2017, em Londres, na Inglaterra, e em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, em 2019.
MN – Qual o título mais difícil que você conquistou?
Daniel Martins – Graças a Deus, fui o primeiro deficiente intelectual a ser campeão paralímpico pelo Brasil e recordista mundial. Fui campeão parapan-americano. Em 2019, eu enfrentei uma depressão. Eu estava muito para baixo e o pessoal da Amei, todo meu time, meu técnico, todo o pessoal tentando me animar para poder chegar ao mundial bem. Foi muito difícil, mas graças a Deus, fui tricampeão mundial. Foi um sonho realizado.
MN – Em Tóquio você era um dos favoritos, mas a Covid-19 te atrapalhou?
Daniel Martins – Infelizmente acabei contraindo a Covid-19. Eu tive um comprometimento alto no pulmão e foi muito difícil voltar. A gente tem que ter muita paciência e nisso o Levi da Amei falou para mim, quando fui para o Japão, que queria que eu voltasse com a consciência tranquila, independente de qualquer coisa. Nisso eu competi e fiquei em 9º lugar no geral. Não passei para a final e aquilo marcou bastante e me machucou muito. Fiquei uns dois dias sem mexer no telefone, dois dias quieto, tentando digerir aquilo.
MN – E como foi passar por isso em um país diferente, distante dos amigos e da família?
Daniel Martins – Meu parceiro de quarto, Felipe Veloso, que é guia, perguntou se eu ia mesmo ficar ali trancado no quarto. Ele falou que eu já estava lá mesmo e precisava aproveitar os jogos, pois a gente nunca sabe quando vai ter outra oportunidade de conhecer um país diferente. Ele me ajudou bastante naquele momento.
MN – Chegaram a duvidar que você ainda pudesse continuar correndo e competindo em alto nível?
Daniel Martins – Em 2023, a gente deu a volta por cima. Escutei gente falando que eu não voltaria a correr, que seria difícil correr de novo. Depois de ter ouvido tudo aquilo, eu coloquei na cabeça que voltaria a correr. Pode demorar um pouquinho, mas o homem lá de cima já escreveu tudo. Chegou o ano de 2023, mundial de Paris, conseguimos fazer a primeira dobradinha histórica do Brasil na nossa categoria. O Samuel Oliveira em primeiro e eu em segundo.
MN – Como foi essa prova?
Daniel Martins – O Samuel estava um pouco nervoso. O menino das Ilhas Maurício virou para a torcida do Brasil e pôs a mão na orelha. Ele fez uma semifinal em uma série, junto com o Samuel, e eu em outra. No dia da prova o Samuel chegou e me falou que eu estava na raia oito e até falei para ele parar de brincadeira.
MN – Essa raia é mais difícil de correr?
Daniel Martins – Tem o lado bom e o lado ruim. O lado bom é que você sai na frente, mas o lado ruim é que você vai correr mais ainda. Então, você não tem estratégia nenhuma. Você tem que sair forte, se você sair devagar o povo vai passar e você não vai conseguir contornar. Eu conversei com o treinador Esquilo (Luiz Carlos Albieri) lá na França e ele falou que a estratégia era sair forte.
MN – E o adversário provocava vocês?
Daniel Martins – Ele começava a encarar o Samuel e eu não deixava. Ele estava querendo amedrontar, mas eu tentei passar tranquilidade. Já tinha falado para o Samuel no Brasil que ia dar dobradinha brasileira e realmente fizemos essa dobradinha histórica.
MN – Hoje você é um atleta da Nike, mas como surgiu essa oportunidade?
Daniel Martins – Em 2015, eu recebi o primeiro kit da Nike. Chegou uma caixa grande e estava no meu nome. Eu não tinha comprado nada, não tinha dinheiro e nem patrocínio. Andava com o tênis furado e não tinha vergonha de nada. Comecei a tirar as coisas da caixa e minha mãe começou a chorar. A gente nunca tinha visto tanta roupa e tanto tênis na vida. Aquilo já foi um sonho realizado. Em 2017, eles me convidaram para ser atleta Nike. Eu achei que o telefone tinha sido hackeado, mas era verdade mesmo.
MN – Você não tinha nenhum patrocínio ainda de material esportivo?
Daniel Martins – Não tinha nada. Então eu assinei o primeiro contrato em 2017 e renovei o contrato depois de Tóquio. Se Deus quiser, ano que vem a gente renova mais um pouquinho. É mais do que um sonho realizado. O menino que não tinha um calçado, que não tinha um chinelo ou uma roupa boa para usar, hoje está entre um dos grandes atletas que representa a maior empresa de material esportivo do mundo.
MN – Nas primeiras corridas você corria com qual calçado?
Daniel Martins – Na época da Casa do Pequeno Cidadão eu corria descalço mesmo. Nem sabia o que era sapatilha. Achava que o pessoal estava correndo de chuteira. Graças a Deus tudo deu muito certo pra mim.
MN – Como é o seu apoio no esporte aqui em Marília?
Daniel Martins – Sou muito grato com o pessoal da Amei, o Esquilo, o Levi, a Zinha, o Celso, o Lucas, todo pessoal que está me ajudando, meu médico, meu fisioterapeuta, nutricionista, psicóloga. Não conquistei sozinho essas medalhas. Foi um trabalho em conjunto, como se fosse uma empresa. Se colocar um bloquinho errado ali, pode dar errado. Está sendo uma carreira maravilhosa e espero levar o nome de Marília longe ainda.
MN – Você ainda acredita que pode competir em mais quantos ciclos paralímpicos?
Daniel Martins – Nesses próximos dois ciclos, mas, talvez, quem sabe ainda um terceiro. É que a vida de atleta é muito dolorida. Tenho dor no joelho. Meu tornozelo eu rompi em 2016, 2017 e 2018. Faço uma bandagem e vou correr. Essas dores não me atrapalham, pois meu sonho é maior que isso. Para realizar um sonho, você sofre bastante. É muito difícil, mas quando você alcança, não tem o que paga.
MN – Hoje você tem noção do tamanho do seu nome no esporte brasileiro?
Daniel Martins – Eu nunca tive muito isso comigo. Sempre fui o Daniel aqui de Marília. Agora já me acostumei mais com as coisas. Em 2016, depois dos Jogos Paralímpicos no Rio de Janeiro, colocaram meu nome em uma escolinha. Eu não acreditei na hora, pensei que fosse o Daniel errado, mas me mandaram uma foto e foi uma alegria imensa. Conheci a escolinha que fica numa comunidade de periferia de lá. Todos ali trabalham por amor ao esporte. Na última vez que fui visitar, encontrei uma criança com síndrome de down participando e o projeto está tomando uma proporção cada vez maior.
MN – Por qual motivo você acha que Marília revela tanta gente boa no atletismo?
Daniel Martins – A estrutura aqui é antiga. Sempre sonhamos com uma pista de atletismo melhor. Em Bauru já tem, mas aqui parou um pouco no tempo. O que faz com que tanta gente seja revelada em Marília é a vontade e competência dos treinadores. O Lecão e o Esquilo sempre estão tentando descobrir mais atletas. Tem que ter paciência e ensinar do zero. Tem que ensinar tudo, o jeito de correr, a posição do joelho, do pé, da mão. São muitos detalhes.
MN – Para ser atleta você precisa abdicar de muita coisa?
Daniel Martins – Com certeza. Todo mundo quer ser atleta, mas você precisa abrir mão de tudo. No dia 21 de novembro, aniversário do meu pai, eu vou estar no Chile. Minha família já se acostumou. Já passei longe aniversário da minha mãe, até mesmo no meu aniversário. A vida de atleta é muito curta e você precisa aproveitar. Tem uma festa, mas no dia seguinte tem treino. Eu sempre levo alguma coisa e volto cedo. Já teve festa que eu fui e levei minha marmita de batata com carne moída. A comida era pastel, que eu adoro, mas você precisa abrir mão se quiser vencer.
MN – Muitos atletas despontam aqui e deixam a cidade em busca de melhores condições de treinamento. Você já recebeu propostas para sair de Marília?
Daniel Martins – Muitas. De 2015 a 2019 eu recebi muitas propostas, mas sempre deixei claro para o pessoal da Amei que eu não saio daqui. Se eu fui campeão aqui e se sou feliz aqui, não tenho motivos para sair. É lógico que uma boa estrutura conta, mas eu abri mão disso para ficar perto da minha família, dos meus amigos, da minha namorada e toda a minha equipe.
MN – Qual recado você passa para quem quer começar no esporte?
Daniel Martins – Não só no atletismo ou no esporte, mas na vida. Muitas portas vão se fechar. Muita gente falava que eu não seria nada na vida. Sempre ouvia isso e falava para mim mesmo que ia mostrar que eu era capaz. Teve muitas vezes que eu pensei em desistir, mas aceitei ajuda e consegui me recuperar. Você não pode desistir na primeira oportunidade. Se você tem um sonho, precisa correr atrás.