Realmente é triste saber que uma quantidade de brasileiros – um número significativo, aliás, quase a mesma população de Portugal ou de Cuba – não sabem ler e nem escrever. São quase 10 milhões de pessoas em todo o Brasil – o número exato é de 9,6 milhões e as populações de Portugal e de Cuba correspondem a 10,3 milhões e 11,2 milhões de pessoas, respectivamente – que olham para esse emaranhado de símbolos e ícones, mas sem qualquer possibilidade de compreender as palavras contidas na mensagem.
‘VOCÊ É UM VENCEDOR’ passará totalmente despercebido sem compreensão e sentido da mesma forma que a mensagem ‘VOCÊ É UM PERDEDOR’. Lembro que quando cursava o primário a quantidade de pessoas analfabetas no Brasil correspondia a 30% da população – um terço. Décadas mais tarde, nos dias de hoje, este percentual caiu para 5,6%.
A redução substancial na ordem de 25% mostra que, mesmo a duras penas e com críticas – principalmente vindas do campo ideológico e muitas vezes vazias ou equivocadas – a Educação brasileira está colhendo os frutos de seus métodos de alfabetização e dos investimentos públicos.
Não à toa, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) impôs o contingenciamento de 25% de todo orçamento municipal para investimentos na Educação. Correto, porque não há avanços educacionais sem a devida valorização salarial e incentivos aos educadores, diretores, coordenadores pedagógicos e servidores da rede pública de ensino.
O processo de alfabetização no Brasil é uma construção coletiva e não uma gincana antagônica entre Branca Alves de Lima (1910-2001), de ‘Caminho Suave’, e Paulo Freire (1921-1997), da ‘Pedagogia do Oprimido’: ambos ajudaram de modo pleno na erradicação da ‘escravidão da ignorância’.
Se ambos vivessem na época da escravidão – aqui nestas mesmas terras – sofreriram perseguições dos senhores de escravos e donos do Poder daquele período, pois a primeira coisa que um capitão-do-mato ou capataz da fazenda fazia era se apoderar da certeza que nenhum daqueles escravos da sua senzala sabiam ler e escrever.
Quem soubesse era duramente torturado, castigado até a morte e seu flagelo – igual na crueldade e na violência do flagelo sofrido pelo Cristo na Jerusalém de dois mil anos atrás – serviria para desestimular os demais a se arriscar na busca pela aprendizagem e alfabetização. Naqueles tempos de escravidão, ler e escrever era um risco.
Para os senhores de escravo, os mesmos que no Rio de Janeiro da época do Império travavam acirrados debates políticos com o ‘Médico dos Pobres’, o Dr Bezerra de Menezes (1831-1900), deputado federal abolicionista que, por duas ocasiões foi eleito prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Branca Alves de Lima e Paulo Freire não prestavam para nada e sim, deveriam, ir ao tronco, lá no meio do terreiro de suas fazendas, para tomar umas boas chicotadas.
Os 9,6 milhões de brasileiros que não sabem ler e nem escrever necessitam, urgentemente, estarem incluídos em programas públicos de alfabetização, justamente para que resgatem o tempo perdido e avancem em suas vidas, principalmente na autonomia intelectual.
Não há progresso se uma parte da população – ainda que apenas 5,6% de todo contingente – não consiga formular textos, verbalizar letras contidas em documentos ou nem ao menos identificar o próprio nome num documento pessoal ou num contrato de trabalho.
Não há progresso se uma parcela não passa pelo letramento, o que vai resultar na composição da liberdade de pensamento, pois sem leitura não ocorre a transformação e avanço intelectual. Sem ler e escrever ninguém consegue se aperfeiçoar e nem crescer exponencialmente. Vai vivendo, assim como a depender do outro para tudo: da leitura da caixa de remédio ao nome da linha de ônibus que precisa tomar para ir ao centro.
Aos que estão lendo esta crônica e caso conheçam alguém que ainda não foi alfabetizada, por favor, indique o EJA (Educação de Jovens e Adultos), programa público de ensino para adultos e jovens que ainda não sabem ler e escrever. Se será ao modelo Branca Alves de Lima ou ao método Paulo Freire, isso realmente pouco importa, pois o que importa de fato é que o indivíduo olhará para a seguinte frase e conseguirá ler e entender que VOCÊ É UM CIDADÃO DO BRASIL, A PÁTRIA-MÃE DO CRUZEIRO DO SUL!
A alfabetização no modelo da cartilha ‘Caminho Suave’ era voltada a resolver um déficit intelectual numa época em que o Brasil era, majoritariamente, rural e analfabeto. Poucos sabem, mas Branca Alves de Lima iniciou seu método em São José do Rio Preto, a 190 quilômetros de Marília, após ter tido uma experiência como professora de primário na zona rural da cidade de Jaboticabal.
Naquele período, na década de 1930, a educadora paulistana passou a identificar a dificuldade cognitiva dos seus alunos e, a partir daí, traçou uma estratégia para que letra e ideia fossem facilmente assimiladas. A revolução cultural, silenciosa e intensa, iniciada pela cartilha ‘Caminho Suave’ teve como data inicial o ano de 1936, quando Branca Alves de Lima passa a lecionar, portanto, em Jaboticabal.
Naquele mesmo ano, aos 25 anos de idade, a jovem normalista muda-se para São José do Rio Preto e no Colégio Cardeal Leme, passa a utilizar seu método de ensino, associando sílabas às imagens. Estima-se que pelo menos 50 milhões de brasileiros – cinco vezes a população de Portugal ou de Cuba – foram alfabetizados pelos ensinamentos da cartilha ‘Caminho Suave’.
O método Paulo Freire estimula a alfabetização dos adultos mediante discussão de suas experiências de vida entre si, através de palavras presentes na realidade dos próprios alunos. Por exemplo, certa vez o líder Chico Mendes (1944-1988) convidou Paulo Freire para desenvolver um projeto de alfabetização dos seringueiros da Amazônia e a cartilha que foi criada para aquele trabalho chamou-se de ‘Poronga’.
A poronga é uma lamparina feita de lata de óleo que os seringueiros usam na cabeça para ajudá-los a iluminar o caminho enquanto percorrem a mata fechada. Na primeira experiência do método Paulo Freire, aplicada em 1963, em apenas 45 dias 300 cortadores de cana aprenderam a ler e a escrever.
Foram apenas 40 horas de aula e 300 homens e mulheres, gente de idade até, deixaram a escuridão da ignorância e do alfabetismo para terem seus caminhos iluminados pelo saber e pelas letras. Branca Alves de Lima e Paulo Freire, este ‘casal’ de educadores nacionais, formam, na minha opinião, a dupla de autênticos patronos da Educação no Brasil. Ambos foram e continuam sendo essenciais para a erradicação do analfabetismo no nosso País.
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Ramon Barbosa Franco é escritor e jornalista, autor dos livros ‘Canavial, os vivos e os mortos’ (La Musetta Editoriais), ‘A próxima Colombina’ (Carlini & Caniato), ‘Contos do japim’ (Carlini & Caniato), ‘Vargas, um legado político’ (Carlini & Caniato), ‘Laurinda Frade, receitas da vida’ (Poiesis Editora) e das HQs ‘Radius’ (LM Comics), ‘Os canônicos’ (LM Comics) e ‘Onde nasce a Luz’ (Unimar – Universidade de Marília), ramonimprensa@gmail.com.