Era um começo de tarde de um sábado lá para trás e naquele tempo assinava a revista Época. Ao chegar em casa – e por aqueles dias morava numa pequena edícula situada nos fundos de uma residência na rua Bassan, no São Miguel, aqui em Marília – a publicação me esperava jogada no corredor. Abri e folheei até a seção literária para saber qual autor seria o destaque daquela edição.
Da página me aparece um senhor, elegante, de blazer cinza, calça – não lembro se jeans – e calçado com botas de cowboy. Pela primeira vez tomava conhecimento do escritor americano Cormac McCarthy. Havia acabado de lançar “The road”, que em português foi traduzido para o literal “A estrada”, uma novela pós-apocalíptica que, pouco tempo depois, seria transformada em filme.
Dois anos mais tarde, chegava às telas “Onde os fracos não têm vez”, filme dirigido pelos irmãos Joel e Ethan Coen, inspirado em livro de mesmo nome de Cormac (“No country for old men”, originalmente). Estrelado por um duelo de talentos: Javier Bardem e Tommy Lee Jones. A trama cinematográfica consistiu numa verdadeira atualização do gênero faroeste americano, autêntica miscigenação dos estilos narrativos dos mestres Clint Eastwood, John Ford, Sérgio Leone e Sam Peckinpah.
Consegui uma versão original do livro “No country for old men” e a cena final do livro – que foi mantida bem fiel na adaptação cinematográfica dos irmãos Coen – consiste numa imersão à profundeza da alma de McCarthy e a conexão com o amor paterno.
Cormac nos deixou terça-feira, dia 13 de junho, no mesmo dia em que foi celebrado o santo mais popular do Brasil, Santo Antônio de Pádua, ou de Lisboa. Estava com 89 anos e para mim, McCarthy foi o Guimarães Rosa dos Estados Unidos, justamente por agregar o universal ao conceito de regionalismo literário. Reproduziu aquilo que o russo Leon Tolstói vaticinou: “Se queres ser universal, comece por pintar a tua própria aldeia”.
Tem uma moçada da minha geração de escritor – autores que nasceram entre o final dos anos de 1970 e a primeira metade dos anos de 1980 – que desde terça está órfã de uma referência literária vinda dos EUA. Isso porque a gente já começou a escrever sabendo que não iríamos ter mais nada de novo do John Steinbeck, do Ernest Hemingway e até mesmo do J.D. Salinger, que embora tenha morrido em 2010 era muito recluso e se recusava a publicar desde os anos de 1960, se eu não estiver errado. Cormac, portanto, supria esta nossa relação com os escritores da terra de Walt Whitman, pois até outro dia McCarthy lançou livros e novas tramas, a exemplo de “Stella Maris”. “A estrada” (“The road”), penso, é uma das obras mais emblemáticas deste mestre contemporâneo, transpassando no livro o amor incondicional que um pai tem pelo filho, remetendo, inclusive, ao sentimento maior que fez o nosso Criador nos conceder seu filho Jesus para que a humanidade tivesse uma chance para tomar o prumo certo antes que ocorra a hectombe derradeira.
O sertão brasileiro foi redescoberto por Guimarães Rosa, em “Grande Sertão: Veredas”, e o Oeste americano traduzido pelas linhas de Cormac McCarthy, revelando lugares brutos e bem selvagens. Mas na verdade, ambos escritores mostraram que, acima de tudo, não há lugar mais bruto e selvagem do que o próprio coração humano. Valeu “Old Cowboy”.
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Ramon Barbosa Franco é escritor e jornalista, autor dos livros ‘Canavial, os vivos e os mortos’ (La Musetta Editoriais), ‘A próxima Colombina’ (Carlini & Caniato), ‘Contos do japim’ (Carlini & Caniato), ‘Vargas, um legado político’ (Carlini & Caniato), ‘Laurinda Frade, receitas da vida’ (Poiesis Editora) e das HQs ‘Radius’ (LM Comics), ‘Os canônicos’ (LM Comics) e ‘Onde nasce a Luz’ (Unimar – Universidade de Marília), ramonimprensa@gmail.com.