Os muitos adjetivos de Ubaldo
Baiano.
Apenas este adjetivo já representa uma qualidade primordial deste escritor que em 2008 foi reconhecido com o Prêmio Camões, considerado o principal título literário para escritores de língua portuguesa. O Camões contemplou a trajetória literária de um membro da Academia Brasileira de Letras, autor de obras valiosas e detentor de uma risada contagiante: João Ubaldo Ribeiro.
Nascido em 1941 na Bahia e falecido no Rio de Janeiro em 2014, Ubaldo cresceu em Sergipe e tem na sua formação de escritor o Jornalismo e o Direito, além da convivência efervescente com gênios da cultura brasileira e, como não poderia ser diferente, da cultura baiana.
Dois nomes sintetizam suas influências: o cineasta Glauber Rocha (diretor de “Deus e Diabo na Terra do Sol” e “Terra em Transe”) e o romancista Jorge Amado (autor de “Capitães da Areia”, “Tenda dos milagres”, e “Gabriela, cravo e canela”).
Autor de obras valiosas, como “Viva o Povo Brasileiro”, “O sorriso do lagarto” e “Sargento Getúlio”, João Ubaldo Ribeiro tem ampla produção jornalística, com uma presença ativa na crônica brasileira. Intelectual irreverente, sempre com inteligência e bom humor transmitia seus recados aos leitores e população (além de jornais brasileiros, Ubaldo foi colaborador de periódicos da Alemanha, Portugal e Inglaterra).
Da safra literária deste baiano altamente irônico, a que mais me agrada é “Sargento Getúlio”. Escrito de um jeito que parece que foi feito tudo de uma só vez, o romance, publicado em 1971, lhe rendeu o Prêmio Jabuti de autor revelação em 1972. Anos depois, em 1983, seria adaptado ao cinema com exímia interpretação de Lima Duarte no papel-título. “Tem ginásio, tem ginásio… Eu nunca vi ginásio dar caráter a ninguém!”, ironiza o satânico Getúlio para o preso político que está levando para Paulo Afonso.
O desencadeamento dos fatos narrados, a escolta de um preso político pelo “famigerado” sargento Getúlio tem o embalo deste integrante da força pública nordestina. Em vários trechos deste monólogo, o leitor terá a certeza de que Getúlio Santos Bezerra é a encarnação da Besta ou do Cão, tamanha sua voracidade e agressividade, sempre recheada por prazer sádico em ferir.
Ao ter contato com esta obra-prima de Ubaldo, me ocorreu, pelo tom narrativo, uma associação mista entre Guimarães Rosa, no modo como compôs “Grande Sertão: Veredas” e seu personagem-narrador Riobaldo, e Jack Kerouac, o norte-americano precursor da geração beatnik, que em “On the road” (livro traduzido para o Brasil pelo historiador Eduardo Bueno e que recebeu o título de “Pé na estrada”) escreveu tudo de uma só vez, inclusive colando as folhas de sulfite que saiam de sua máquina de escrever durante a produção do original do livro, criando, assim, um verdadeiro pergaminho.
Outra semelhança com o mineiro Guimarães é o tom regionalista, com expressões de seus personagens: ditos próprios de um território, tanto geográfico, quanto mítico. É no jeito de falar e de contar de Getúlio que o leitor tem noção do que se passa em todo o livro. A sequência contínua, com um fôlego intenso página a página, sem perder o raciocínio e a conduta, ao meu ver, garante sintonia entre Kerouac e “Sargento Getúlio”. Ubaldo, acima de tudo, além de ter sido um dos grandes nomes da Literatura do idioma português do Século XX, consistiu numa personalidade carismática e bem alegre.
Choro de rir ao lembrar ao menos dois depoimentos dele onde a palavra “flatulência” aparece como personagem central. Em uma delas está a presença marcante de Glauber, outro gênio indomável das artes brasileiras. A segunda foi a forma como ele adjetivou a série de filmes “Guerra nas Estrelas”, produzida por George Lucas, ao tentar convencer seu filho a ler os épicos gregos, como “Ilíada”, de Homero. “Meu filho, “Star Wars” diante de “Ilíada” é uma flatulência da indústria cultural. Vai ler Homero”, respondeu ao filho.
Ubaldo foi bem próximo de um poeta e escritor mariliense que hoje vive na Bahia, o Gustavo Felicíssimo, grande amigo que recentemente esteve por Marília visitando os familiares, mas que por conta de desencontros na minha agenda profissional – tive muito trabalho aos fins de semana, inclusive com coberturas jornalísticas – acabamos não nos vendo dessa vez.
Felicíssimo me contou que recebeu de Ubaldo a orientação de se reconhecer, profissionalmente, como escritor. Ao definir qual profissão exerce – numa ficha de cadastro ou na recepção de um hotel – Ubaldo sempre colocava escritor e não jornalista. Dizia que, depois que assumiu a profissão e passou a preencher as fichas cadastrais assim, sua carreira deslanchou.
Felicíssimo teria feito o mesmo e eu, depois de ouvir a história do meu amigo baiano-mariliense, também passei a me definir primeiro como escritor e, depois, jornalista. E para fechar. Em “Sargento Getúlio” há um trecho onde o personagem diz o seguinte ao preso político: ‘Sua sorte é que vão querer julgamento. Tem jornalistas a seu favor….’. Isso foi e será João Ubaldo Ribeiro!
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Ramon Barbosa Franco é escritor e jornalista, autor dos livros ‘Canavial, os vivos e os mortos’ (La Musetta Editoriais), ‘A próxima Colombina’ (Carlini & Caniato), ‘Contos do japim’ (Carlini & Caniato), ‘Vargas, um legado político’ (Carlini & Caniato), ‘Laurinda Frade, receitas da vida’ (Poiesis Editora) e das HQs ‘Radius’ (LM Comics), ‘Os canônicos’ (LM Comics) e ‘Onde nasce a Luz’ (Unimar – Universidade de Marília), ramonimprensa@gmail.com