Saudade reúne arte, beleza, memórias e crenças populares
Jesus está à porta e bate. A representação em bronze, tamanho natural – considerando um nazareno de elevada estatura – faz parte do acervo de artes sacras do Cemitério da Saudade, em Marília. Por toda a necrópole, onde estão enterradas cerca de 100 mil pessoas, são dezenas de monumentos para alentar os vivos e saudar a memória dos que já morreram.
A cena descrita acima remete a trecho do livro Apocalipse, o último na sequência bíblica. Na visão de João, que ao escrever estaria exilado na ilha de Patmos, o Salvador anuncia sua segunda vinda. Jesus chama o morador, com a expectativa de ser ouvido e recebido, para compartilhar a eternidade de paz.
Além da imagem do Messias, redentor dos cristãos, representações de anjos e santos tradicionais católicos ocupam centenas de túmulos.
É raro algum jazigo mais elaborado – revestidos com pedras mais sofisticadas ou ornamentos – sem algum tipo de referência religiosa.
Impossível não se impressionar com o nível de detalhamento em muitas das esculturas, comparável a obras sacras encontradas nas igrejas.
Além de cristãos, também deixaram algumas marcas no Cemitério da Saudade, com a sobriedade que os caracterizam, marilienses budistas e judeus. Olhar mais atento localiza, inclusive, referências ao islã, entre as sepulturas.
A Prefeitura de Marília estima que mais de 23 mil jazigos estejam demarcados na necrópole, que começou a funcionar em 1929. Sobretudo nas primeiras décadas, a construção de capelas e esculturas suntuosas era uma prática comum, uma herança dos portugueses e italianos.
A professora Alessandra Cibantos, de 51 anos, admite que já não tem a mesma preocupação com o jazigo da família como tinha a avó. O lugar é simples, sem grandes ornamentos ou esculturas, mas para a educadora, tem uma relevância simbólica.
“Se ela [a avó] pudesse ver como está esse túmulo, ia ficar muito brava”, afirma a professora, que avalia a necessidade de aumentar a manutenção.
Depois que pai e mãe morreram, Alessandra passou a ir mais vezes ao local, mas a regularidade nem se compara às visitas que a mãe fazia.
“Acredito que é um hábito que se perdeu no tempo. Para mim, que sou católica, eles [pais] estão na Glória de Deus, em um lugar de paz. Mas acho que o zelo pelo jazigo é, simbolicamente, importante”, disse.
VÁRIOS MUNDOS
Os muros do cemitério não bloqueiam as desigualdades sociais. Na área central da necrópole, à beira da avenida que segue do portão de entrada até o trecho final da área mais antiga, estão sepultados pioneiros, empresários, proprietários de terras, profissionais liberais das classes sociais mais abastadas.
A área é arborizada, com calçamento mais regular e apesar de muitas sepulturas antigas, a maioria recebe manutenção regular.
Nesse modelo – espontaneamente estruturado há décadas – há também uma classe média que orbita, e ocupa as laterais. No caso da necrópole, ainda são vias com árvores, menos saliência nos pavimentos e limpeza regular dos jazigos.
As margens e nos fundos do cemitério não há arborização. Em geral são os locais mais vulneráveis aos furtos de metais. O setor têm menor visitação, caminhos mais irregulares e sepulturas mais simples. É a periferia da necrópole.
MAIS VISITADOS
Entre os túmulos mais visitados, em alguns jazem pessoas que morreram jovens, sem nenhuma conotação sobrenatural. Carreiras brilhantes e ampla repercussão, após acidentes e fatalidades, geram a curiosidade.
É o caso da antropóloga, ativista ligada à Universidade Estadual Paulista (Unesp) Marina Monteiro Ravazzi, de 26, que morreu em acidente de carro em Brasília, cidade para onde mudou-se após aprovação em concurso. O local ostenta uma mensagem de Marina, com cores fortes e vibrantes. A curiosidade para saber da história dela faz muitos pararem diante da sepultura.
Às vésperas de finados, muitos já procuraram o túmulo do jovem empresário Fabiano Rodrigues Silva, que morreu vítima da Covid-19, no início desse ano. O amigo e empreendedor do setor de eventos, Armando Tripa, levou um banner e colocou sobre a sepultura.
“É um cara muito querido em Marília. Hoje (segunda-feira) já veio bastante gente, amanhã com certeza, muito mais. Nós perdemos um grande amigo. No aniversário dele, eu fiz uma festa para ele. Era uma pessoa alegre, contagiante. Jamais será esquecido”, afirma.
Mas, evidente, que ainda seguem imbatíveis – segundo a direção da necrópole – o número de pessoas que buscam informações sobre as capelas onde estão os restos mortais de Guaracy Marques Pinto, o criminoso “Pé-de-Veludo”, morto em confronto com a polícia em 1964.
Em uma das buscas pelo bandido, que segundo a crença popular roubava dos ricos e dividia com os pobres, o então delegado de Marília, Ewerton Fleury Curado, foi morto por Alcyr, irmão de Guaracy.
A repressão da polícia, após a perda do policial, terminou com as mortes de “Pé-de-Veludo” e dois irmãos. Alguns anos depois, milagres – não reconhecidos pela igreja – passaram a ser atribuídos a Guaracy.
O sepultamento já completou 57 anos e todos os anos a capela do “bandido santo” passa a data com pintura nova, muitas velas e flores.
Nesta segunda-feira (1), quando esteve no cemitério, a reportagem do Marília Notícia encontrou duas devotas, mas que preferiram não se expor e nem comentar o ato de fé, o qual foi respeitado pelo site.
Na lista dos mais visitados também está o túmulo da menina Iracema Rufino dos Santos, que foi estuprada e estrangulada, aos 7 anos, na década de 1950. Na época a imprensa chamava o crime de “barbaridade do cafezal”, em alusão ao local para onde a menina foi levada pelo maníaco que a matou.
Curas e outros milagres atribuídos à criança fizeram, no imaginário popular, a fama da “menina-santa”. A prova de que a crença superou gerações é que até hoje a sepultura de Iracema recebe visitantes, que rezam, acendem velas e pedem que a menina conecte seus pedidos ao céu.
Para se localizar no Cemitério de Marília os visitantes podem contar com um sistema de QR Code instalado pela Empresa de Mobilidade Urbana de Marília (Emdurb). Os jazigos são identificados por quadra e número. A necrópole estará aberta à visitação das 7h às 18h.
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