Médica fura ‘barreira social’ para conquistar diploma
Com 1.122 profissionais atualmente cadastrados no Ministério da Saúde, Marília comemora o Dia do Médico – 18 de outubro – com diversidade de profissionais. São 324 clínicos gerais, 126 pediatras e 68 cardiologistas, entre as especialidades mais numerosas. Para grande parte deles, as condições de trabalho mais adequadas, na rede pública, é um presente que cairia bem.
Entre os profissionais da Medicina, muitas são as histórias de superação. Há gerações, a profissão é o sonho de realização pessoal para homens e mulheres, independente de suas condições sociais ou de onde nasceram ou cresceram.
Sonhar e realizar fazem parte da história da médica Aguida Maria Corsi, de 67 anos, formada pela Faculdade de Medicina de Marília (Famema), em 1984.
Em um país de desigualdades, o atual currículo de médica do trabalho, profissional experiente em saúde pública (clínica geral, urgência e emergência e saúde da família) – entre outras especialidades ao longo da carreira – contrasta com a infância pobre na zona rural de Bandeirantes, cidade do interior paranaense.
Irreverente, Aguida afirma que teve que “usar os pontapés que recebeu na vida para se projetar”. Assim, superou muitas adversidades.
“Quando eu fiz sete anos, meu pai, seu João Corsi, disse: ‘quem faz aniversário ganha o quê’? Eu respondi, presente! Ele completou: ‘vem cá, então, e escolhe uma enxada para você trabalhar’. Eu era só uma menininha, mas rebati meu pai: também pode ir para escola, com sete anos”, lembra a médica.
Alguns anos mais cedo, ela já aprendera com o avô – imigrante italiano – a mágica de juntar palavras. Até latim o “nono” ensinou. Também tentou aprender aulas de acordeon, mas Aguida não conseguia segurar o instrumento. Então, o vecchio buona gente (velho gente boa, na tradução simples) resolveu se ater às letras.
“Meu pai sabia da minha facilidade para aprender. Então falou: você vai [para a escola], mas de tarde, quando chegar, é hora de trabalhar na roça. Vou ganhar uma filha estudada, mas perder meio dia de serviço”, lembra a médica, buscando as palavras do pai, que conseguia ser terno no propósito e duro nas palavras, quando o assunto era honra e trabalho.
O pai entendeu quando a menina de 14 anos quis ir embora da fazenda, em busca de trabalho e estudos na cidade. Não teve medo dela “ficar mal falada”, como era comum às meninas que decidiam abraçar as artes ou as ciências, nos rincões do Brasil.
Aguida conta que trabalhou como atendente em banca de jornal (primeiro lugar onde chegou para perguntar sobre vagas de trabalho), depois foi atendente de um consultório médico. De lá para o hospital da cidade não demorou, mas o serviço disponível para a jovem que morava sozinha em edículas – já devidamente discriminada – era como cozinheira, depois, faxineira da pediatria.
“Eu era a única mulher no Científico (antigo Ensino Médio, preparatório para cursos de graduação). Só tinha meninos. Para aumentar o escândalo, estudava à noite. As meninas da minha idade faziam magistério. Eu já não era mais mulher para casar, mas quem disse que queria casar?”, brinca Aguida.
Na década de 70, uma guinada – na conclusão de etapa dos estudos. “Foi um pé no traseiro que levei. A freira que administrava o hospital me chamou para eu aprender curativos e injeção. Ela queria uma pessoa ‘prática’, mas não era isso que eu queria. Recusei e aleguei que era por causa dos estudos. Ela não tolerou o não e me demitiu. Até hoje agradeço aquela freira”, conta a médica.
O empurrão “mandou” Aguida para São Paulo. Lá, por anúncio de jornal, acabou indo parar em um curso de formação em enfermagem do Hospital Beneficência Portuguesa, um dos melhores da Capital Paulista.
Os estudos garantiram a formação como enfermeira, além de empregos no hospital dos portugueses e também no Sírio-Libanês. A sua geração de profissionais, no coração do desenvolvimento médico brasileiro, teve como professor figuras como Euryclides de Jesus Zerbini, pioneiro da cirurgia cardíaca no Brasil e do transplante cardíaco no mundo.
“Naquele tempo era assim, quando nada dava certo no Interior, a gente ia para São Paulo. E lá, dependendo de onde você transitava, o que você fazia da sua vida, encontrava nos corredores gente como o Zerbini (que me chamava de pé-vermelho, em alusão à origem paranaense) e o Antônio Ermírio de Moraes (filantropo do Beneficência). Quando a gente saia do trabalho, ia num barzinho e ouvia a Elis cantando. Era assim”, resume.
Após largar a enfermagem e montar uma lavanderia, na qual obteve bons resultados econômicos, Aguida resgatou o sonho de menina. Ela foi incentivada pelo seu marido à época, deixou São Paulo e mudou-se para uma cidade distante, onde um curso relativamente acessível prometia qualidade.
Era a Famema. “A venda da lavanderia não me deixou rica. Então, era um projeto nosso, ele estava me ajudando. Mas pouco tempo depois de eu chegar em Marília, meu companheiro morreu. Nossa união não era formalizada, não existia proteção social se você não fosse casada. Fiquei sozinha, sem dinheiro, mas era aluna da Famema”, conta.
O financiamento estudantil e a compra de uma casa com edícula – o que não era novidade – garantiram a sobrevivência e o sonho da futura médica. “Eu alugava o imóvel da frente e morava nos fundos. Só fazia para comida e para pagar os 10% que o banco não cobria, na faculdade”, relata.
Na formatura, é lógico que os pais estavam presentes. Aguida encheu a mãe de orgulho e pôde dançar a valsa com o pai, relembrando o dia da enxada, aos sete anos, agradecida por ter aprendido a lutar pelo pão de cada dia, não desistir dos sonhos e por manter o caráter sob qualquer circunstância.
Uma das principais heranças dele, com certeza, é a objetividade que caracteriza a médica. “Sou tão direta, que assusto as pessoas. Não sei fazer rodeios. Falo na cara. Tem gente que não se acostuma, mas minha vida sempre foi assim. As coisas são o que são. Aprendi que tapinha nas costas não significa amor e muito menos respeito. Você tem que ser verdadeiro”, ensina.
O exemplo de vida de Aguida foi determinante para que o filho, Pedro Danilo Corsi Pozzer, também abraçasse a profissão. “Ele se formou faz pouco tempo. Vive hoje no Mato Grosso e já está fazendo residência. Desde cedo tinha jeito para ser médico”, garante.
A medicina que Aguida exerce leva em consideração a realidade das pessoas. “Sempre que é possível, tiro a mesa que fica entre o paciente e eu. Não receito remédio caro, se eu sei que a pessoa não pode comprar, não vai conseguir gratuitamente e vai deixar de tomar, por não ter condições. A medicina é feita para as pessoas, nunca o contrário”, define.
A vida de privações e lutas – superada com a profissão que ainda é uma das que melhor remuneram no Brasil – não roubaram simplicidade da menina de Bandeirantes, que não teve medo de ficar “mal falada” e viveu grandes experiências, realizando seu sonho.
Inclusive, o mais recente, ao mesmo tempo, antigo: tocar acordeon. Para isso, iniciou aulas há poucos meses. Pena que o nono já partiu e não poderá ver a desenvoltura.