Ghost-writers veem demanda crescer com redes sociais
Um espectro ronda a literatura – não o fantasma dos Natais passados que assombra o sisudo Ebenezer Scrooge de Charles Dickens, nem o defunto autor de Machado de Assis. Esse espectro literário é de carne e osso, e vem se tornando cada vez mais comum: o ghost-writer que, em inglês, quer dizer algo como “escritor fantasma”.
O leitor pode não se dar conta, mas muitos dos títulos expostos na prateleira de uma livraria não foram escritos pela pessoa cujo nome é estampado na capa. Seja por prestígio, para veicular um conhecimento técnico por meio de uma escrita mais clara ou por falta de tempo para sentar e escrever, são muitas as pessoas que recorrem ao ghost-writer, ou seja, alguém que escreve livros por encomenda de maneira anônima, uma espécie de escritor de aluguel.
Esses profissionais atuam nas sombras para tornar realidade obras que, de outra maneira, jamais veriam a luz do dia. Funciona assim: alguém contrata um ghost-writer, transmite a ele o conteúdo do livro que gostaria de ver pronto e é o profissional quem vai transformar toda aquela informação bruta em texto. Ao final do processo, o contratante fica livre para comercializar ou distribuir o livro como sua própria obra.
A figura não é nova na literatura brasileira: romances como O Caso Morel (1973), de Rubem Fonseca, e Budapeste (2003), de Chico Buarque, apresentam personagens que exercem essa profissão O primeiro ghost-writer brasileiro, Francisco Gomes da Silva (1791-1852), escrevia os discursos de D. Pedro I, enquanto Autran Dourado (1926-2012) o fez para Juscelino Kubitschek. Até Clarice Lispector já atuou como ghost-writer.
Embora a natureza anônima dessa atividade torne impossível mensurar quantitativamente, a impressão dos profissionais da área consultados pela reportagem do Estadão é unânime: a demanda por ghost-writers nunca foi tão grande quanto hoje. “Está crescendo muito porque cada vez mais as pessoas querem escrever livros. Qualquer influencer, palestrante, professor, qualquer pessoa percebeu que ter um livro é uma grife, um upgrade no currículo. Tudo passa na vida, mas um livro fica”, afirma Nanete Neves, escritora que ministra cursos de ghostwriting e já produziu 25 livros assinados por nomes como Paulo Autran e Adib Jatene. Mas ela adverte: “Eu não escrevi esses livros, apenas transformei o conteúdo do outro em livro. O bom ghost não inventa nada, ele tira o máximo de conteúdo do autor para transformar a narrativa em um livro gostoso”.
A escritora Claudia Pucci Abrahão, que também presta serviços como ghost-writer, define a atividade da seguinte forma: “Meu trabalho é buscar a síntese narrativa, a marca que essa pessoa deixa no mundo”. Ela explica que, com a ascensão de influenciadores digitais, youtubers e outras personalidades, o mercado vem crescendo. “É muito diferente a linguagem com que a pessoa se comunica verbalmente e a linguagem escrita, por mais que o livro seja mais coloquial. Tem gente que não tem tempo ou tem dificuldade para escrever, então prefere contratar alguém para poder sintetizar o que já traz em outros canais ou em outras circunstâncias.”
Sobre a relação entre o contratante e o escritor, os ghost-writers enfatizam que é importante que tudo fique estabelecido de forma clara, se possível em contrato, antes do início do projeto. O escritor George Amaral conta que essa relação se baseia na confiança: “Eles têm medo de passar essas ideias para outra pessoa e perder o controle disso. Tem alguns que fazem contrato, cláusula de confidencialidade. Tem esse receio, mas a partir do momento que se soltam e confiam, flui bem. Quem está escrevendo tem que ter um desprendimento, porque no fim o livro é da pessoa, o mais importante é que esteja do jeito que ela quer”.
Nanete afirma que o maior desafio da atividade é reproduzir “o timbre” do contratante. “Você precisa se libertar do texto jornalístico. O texto jornalístico escrevo no meio da feira livre, o texto literário é outra coisa. Tem toda uma técnica, questão de empatia, saber ouvir, ler as entrelinhas.” Apesar disso, ela admite que às vezes a intervenção do ghost-writer se faz necessária, especialmente para evitar que livros de memórias provoquem mal-estar entre pessoas que conheceram quem conta sua história. “Já cheguei a dizer: ‘acho que o senhor não devia dizer isso, pode magoar fulano, que tal dizermos isso de outro jeito?’.”
Quanto à rotina puxada de trabalho, George lembra que o período em que mais escreveu seus textos autorais foi justamente enquanto estava envolvido em um projeto longo de ghostwriting. “A escrita é um hábito, quanto mais você escreve mais fácil vai escrever outras coisas”, acredita ele. Já Claudia conta que costuma se envolver tanto com os projetos que tem dificuldade para produzir seus próprios textos nesses períodos. Apesar disso, ela não se arrepende: “É uma oportunidade de estar em contato com histórias e personagens que não saíram da minha imaginação”. Nanete concorda: “Eu até sonho com o autor, fazer um mergulho na vida do outro não é fácil”.
Além do processo em que o ghost-writer produz o livro em sua totalidade, existe também a possibilidade de que o contratante receba uma mentoria para escrever. “É muito forte e rico quando a pessoa se apropria da própria história”, diz Claudia. George, que também presta esse tipo de consultoria, conta que a evolução costuma ser visível nos projetos: “Os primeiros rascunhos são mais truncados, depois a gente entra em uma sintonia”.
Mas o que motiva alguém a contratar um ghost-writer? São muitas as razões possíveis. Alguém que quer registrar as próprias memórias ou homenagear um parente; alguém que pretende narrar a trajetória da própria família; um executivo que almeja compartilhar sua experiência corporativa; uma empresa que quer apresentar a própria história; um profissional ou especialista em algum assunto que visa usar o livro como cartão de visitas; um influenciador que quer ampliar seu público ou uma celebridade com intenção de publicar sua biografia.
O que levou Heloísa (nome fictício) a contratar os serviços de um ghost-writer foi o bloqueio criativo. “Como era um livro que falava de despertar de consciência, espiritualidade, houve momentos que despertavam conteúdos emocionais muito fortes meus. Eu travava, não conseguia escrever.” A partir de sua experiência narrada em encontros, o profissional transformou seu discurso em texto. “Ficava perfeito, era exatamente a minha energia, o meu olhar. Escrever é mais profundo do que falar. A escrita para mim sempre foi um processo de muita introspecção”, conta Heloísa, que ficou satisfeita com o resultado.
Já Félix (nome fictício), que é médico, precisava “se livrar” de uma ideia recorrente que o acossou por anos após assistir a um documentário de Carl Sagan: “Nunca havia posto nada no papel, mas a cada seis meses aquela ideia voltava. Uma vez, resolvi esboçar um livro e, para quem não tem experiência, é difícil ter organização e disciplina para escrever. Não é fácil escrever um livro coerente. Empaquei”. A experiência com um ghost-writer foi tão positiva que Félix passou a escrever em coautoria com ele. “Quando ele escreveu o primeiro capítulo, tive uma reação de ciúmes: outra pessoa escrevendo a minha história?”, lembra Félix “Mas a presença dele foi essencial para que a história acontecesse.”
De acordo com os profissionais consultados pela reportagem, o período dos projetos costuma variar entre seis meses e um ano, e os valores podem girar em torno de R$ 30 mil a R$ 75 mil, ou até mais a depender da dificuldade do livro encomendado. Há casos em que o ghost-writer aparece como coautor, mas normalmente ele não é citado no livro e pode até ser proibido por uma cláusula de confidencialidade de falar publicamente a respeito de sua participação no projeto. De modo geral, os livros são de não ficção, mas existem também obras de ficção produzidas de modo anônimo para um contratante, embora sejam minoria.
Um calafrio há de percorrer a espinha do leitor na próxima visita a uma livraria, pois enquanto se passeia pelas lombadas coloridas dos livros, fantasmas podem estar rondando aquelas obras. Mas não há motivo para temor: esses espectros não são ciumentos. Apesar do tempo e do trabalho investidos em uma obra literária, Nanete garante: “Autor é uma coisa, escritor é outra. O cara é autor porque a história é dele. Quem quer ser ghost-writer precisa ter o ego resolvido”.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.