Lei Áurea mantém valor histórico, mas perde significado
No passado recente, o dia 13 de maio chegou a ser considerado o dia mais importante para lembrar que nenhuma pessoa poderia ser escravizada ou, em uma expressão mais atual, explorada por ninguém. O “Dia da Libertação dos Escravos”, da sanção da Lei Áurea, porém, tem valor histórico, mas não é data para nenhuma celebração.
O motivo é muito simples: deixar de ser escravo não significou reconhecimento à igualdade, acesso à democracia e garantia de respeito. Os 133 anos desde a assinatura deixaram isso muito claro.
Na visão de dois diferentes personagens, que têm na pele a marca de um Brasil que clama por oportunidades e dignidade a todos, o Marília Notícia explica porque a data perdeu significado ao longo do tempo.
O professor aposentado Edemir de Carvalho, de 71 anos, descobriu logo cedo que o conhecimento é libertador. Filho de um ferroviário e uma dona de casa, em Campinas, o jovem destoou da maioria dos garotos pobres de sua idade. “Não é ter a pele negra, é gana, coisa de gente”, define.
Interessado pelos estudos, literatura e artes, escreveu uma peça de teatro aos 20 anos. “Eu queria entender, questionar, contestar, aprender, mas não era fácil. O acesso era complicado e, sim, era mais difícil por eu ser um garoto negro. Para a maioria, ainda é mais difícil. Há uma questão social no entorno que dificulta”, lamenta.
Em 1985, já formado em Ciências Sociais, ingressou na carreira docente na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Marília. Entre mais de três mil professores no Estado, eram cerca de 20 negros. Edemir era o único na cidade.
“Se teve algum [professor] antes de mim não sei, mas, naquela época era somente eu. Sabe por que? Porque a maioria nem tentava, não acreditava. Não tinha em quem se espelhar. Se tentasse, a probabilidade de desistir era muito grande. Para estudar, você tem que ter tempo e tempo é dinheiro, que você usa para comprar comida”, explica o docente.
Como cientista social, Edemir acredita que demorou – somente a partir da década de 70 – para o 13 de maio começar a ser questionado como “data comemorativa”. A abolição na canetada da princesa, para ele, foi um mero e tardio ato de ofício, de um Império que já estava atrasado diante do mundo.
“Uma ‘heroína aristocrata’, que fez o que o país já estava sendo pressionado a fazer, não representa uma libertadora para nós. O mundo industrial e mercantil não queria mais a escravidão, a burguesia urbana brasileira não queria mais aquele sistema. Os negros estavam fugindo das fazendas e criando quilombos”, afirma.
O momento histórico (final do século XIX) conecta a outro personagem: Zumbi dos Palmares, líder daquele que foi considerado o maior dos quilombos do período colonial. Como símbolo da luta, a data de morte dele – 20 de novembro – passou a ser celebrada como significativa para a igualdade racial no Brasil. Isso só aconteceu em 2011, sem feriado nacional.
FUTURO
Antenado nas novidades da web e multiconexões, Matheus Black, de 32 anos, é publicitário e especialista em marketing digital. Ele comanda uma equipe em sua própria agência e representa a “cara do jovem negro” bem-sucedido, que hoje gera oportunidades.
Em um contexto social mais aberto à diversidade, ele exerce uma atividade menos clássica – em relação ao professor Edemir –, mas nem por isso encontrou facilidades.
“Comecei a trabalhar como legionário na Santa Casa. Me destaquei e fui contratado como auxiliar de escrita. Quando saí, fui trabalhar no almoxarifado de outro hospital, mas nesse tempo todo, interessado, buscando conhecimento e alternativas”, lembra.
Matheus passou a conciliar o trabalho em casas noturnas, promovendo e depois gerenciando baladas. Organizava festas universitárias e eventos, até que a atividade acabou ocupando todo o seu dia. Estava descobrindo uma nova profissão.
“Conheci muita gente e me motivei a fazer faculdade de publicidade. Eu mesmo paguei. Meus pais foram muito importantes para minha formação, educação e caráter. Mas não deram carro, não pagaram para eu estudar”, relata o empresário.
Envolvido com eventos, Matheus diversificou contatos no mundo empresarial e montou sua própria a agência de publicidade.
“Nunca senti o preconceito depois que comecei a trabalhar e as coisas deram certo para mim. Fui muito respeitado, pelo meu trabalho, mas quando criança sim, senti o preconceito. Infelizmente, isso continua a existir na nossa sociedade e faz com que muitos garotos parem no caminho”, pondera.
Sem negar a existência da lamentável discriminação, Black acredita que, acima de tudo, “existem seres humanos, pessoas”, independente das características raciais, que não definem ninguém.
“O jovem negro tem que pensar como ser humano, não é menos que o branco. O negro tá na moda… E faz tempo… Mas é importante que ele [jovem] saiba que consegue ser melhor, independente de onde está. Pode ser um bairro de periferia, em uma situação desfavorável, tem que estudar, levantar a cabeça”, estimula o empresário.
Para Matheus, não é a cor da pele que vai fazer diferença. “Se você tiver resiliência e foco onde quer chegar, um sonho de melhorar a vida, para a sua família, nada vai conseguir te parar”, acredita.
Com certeza, em um “papo reto” para garotos brancos, negros, japoneses, Black se refere – em sua linguagem – a tal “gana”, que o professor Edemir citou no começo dessa reportagem, é a convicção de que a correnteza, por algum motivo, pode estar pior para você. Mas o desejo de chegar na outra margem é tanto, que rio nenhum vai estragar seus planos.