Requisições administrativas e o risco de se errar na dose
Segundo frase atribuída ao médico e físico suíco-alemão Paracelso, dita no século XVI, e já incorporada à sabedoria popular, a diferença entre o remédio e o veneno (ou seja, entre a vida e a morte) está na dose.
Essa afirmação pode ser aplicada não apenas no âmbito da saúde, mas, também, no meio jurídico. Vejamos.
Segundo a Constituição Federal preceitua em seu art. 5º, inciso XXV, “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”.
Este preceito constitucional consagra o instituto da requisição administrativa que, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, é “ato administrativo unilateral, autoexecutório e oneroso, consistente na utilização de bens ou de serviços particulares pela Administração, para atender a necessidades coletivas em tempo de guerra ou em caso de perigo público iminente”.
No âmbito do Sistema Único da Saúde (SUS), a Lei nº 8.080/90, estabelece que: “art. 15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as seguintes atribuições: […] XIII – para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização”.
Como se vê dos preceitos constitucional e legal acima mencionados, a requisição administrativa representa importante instrumento a serviço do Poder Público para enfrentar situações de exceção, dentre as quais evidentemente se inclui a atual pandemia de Covid-19, apesar de o texto mencionar, apenas, as epidemias.
Utilizando-se de tais preceitos, os entes federados têm realizado dezenas (ou mesmo centenas) de requisições administrativas, as quais estão recaindo sobre respiradores, medicamentos, máscaras de proteção, máscaras cirúrgicas, luvas, aventais e óculos de proteção, bem como sobre imóveis e serviços de pessoas físicas e jurídicas.
Essa utilização, em tese, é perfeitamente possível e, em certa medida, até mesmo imprescindível, diante do aumento de preço abusivo praticado por alguns fornecedores, o que torna inviável a compra pelo Poder Público.
Aqui, contudo, da mesma forma que entre o remédio e o veneno, a escolha da dose certa é extremamente necessária, pois a banalização das requisições administrativas, além de trazer resultados indesejáveis, também pode representar violação ao texto constitucional.
Essa, aparentemente, é a situação da recente requisição de agulhas, seringas e medicamentes que compõem o chamado “kit intubação”, pois as requisições administrativas realizadas acabaram trazendo grave desabastecimento ao setor, comprometendo, em algumas cidades, o atendimento aos infectados pela Covid-19.
É certo que os entes federados, como já vimos, podem realizar requisições administrativas, mas é importante que estas sejam efetuadas de forma equilibrada, respeitando os contratos celebrados pelos demais entes federados e, também, pelo setor privado, em especial porque grande parte dos leitos SUS destinados ao tratamento de pacientes de Covid-19 estão localizados justamente em hospitais particulares sem fins lucrativos, que acabam sendo bastante penalizados por tais requisições administrativas.
Além disso, tais requisições administrativas devem respeitar a livre iniciativa e a livre concorrência, ou seja, se existirem vários fornecedores de um mesmo bem ou produto, todos devem ser atingidos da forma mais equânime possível, a fim de evitar que alguns sejam beneficiados em detrimento de outros. O ônus da requisição administrativa e de seu pagamento a posteriori deve ser suportado, dentro do possível, de forma igualitária por todos, sob pena de caracterização de desvio de poder ou de finalidade.
No mais, as requisições administrativas devem ser realizadas de forma a respeitar o texto constitucional, sob pena, inclusive, de caracterizar ato de improbidade administrativa, tal qual ocorre com os atos de desvio de recursos públicos, tema que, contudo, pretendo analisar em outro momento.
Assim, se não for adotada na dose certa, a requisição administrativa pode matar o paciente.