Na era das lives, Twitch desafia YouTube e Instagram
“Você sabe como fazer um disco em uma live? Não? Nem eu! Vou descobrir isso junto com quem me acompanha!”, diz ao Estadão o rapper Marcelo D2. Na era dos shows pela internet em meio à quarentena, o artista decidiu produzir um novo álbum e mostrar todo o processo em tempo real pela internet. Não apenas isso: quem acompanha as transmissões também pode contribuir com ideias para a obra – foi assim que ele conheceu dois dos seis músicos que estão criando batidas para Assim Tocam Os Meus Tambores.
Mas, em vez de fazer as lives pelo YouTube, Facebook ou Instagram, casas das “megatransmissões” durante o isolamento social, D2 está tocando o projeto na Twitch, plataforma de streaming de games comprada pela Amazon em 2014, por US$ 970 milhões. Ele não está só: nomes como Pitty, Criolo, Fresno e até a produtora de funk Kondzilla também aderiram ao serviço. Não é coincidência. Num cenário que parecia consolidado entre Google, dono do YouTube, e Facebook, dono do Instagram, a Amazon decidiu entrar na briga e transformar a Twitch numa terceira via para conteúdo musical.
Criado em 2011, a Twitch foi criado pela Justin.tv, finada plataforma de streaming. Desde o início, o serviço tinha foco nos fãs de games, com a transmissão de partidas e campeonatos virtuais. A popularidade na época, com jogos como League of Legends e Counter-Strike, chamou a atenção da Amazon, que impulsionou o serviço.
Em 2019, porém, a gigante de Jeff Bezos percebeu que poderia ampliar o escopo de seu serviço e apostar no entretenimento, contratando nos EUA executivos de outros serviços de música, como Spotify e Pandora. “O movimento em direção à música vem de 2019 e se intensificou em 2020, empurrado pela pandemia”, explica Wladimir Winter, diretor de parcerias e conteúdo da Twitch no Brasil.
Do início do ano para cá, a plataforma começou a atrair artistas brasileiros. “Quando veio a pandemia, houve um boom de lives. Decidi observar”, diz a cantora Pitty. “Percebi vários amigos da música indo para Twitch e achei a dinâmica diferente. Vi que ali poderia oferecer conteúdos diversos.”
Assim como D2, ela vai além da música, usando a Twitch como um canal de TV. É como se fosse dona de uma versão própria da GNT, canal a cabo no qual participa do programa Saia Justa. Na internet, ela tem uma grade de terça à sexta-feira, com atrações que versam sobre dicas culturais, feminismo, moda e curiosidades sobre sua carreira, além de um papo que acontece toda quarta-feira, após sua participação no programa da Globosat.
Segundo Winter, da Twitch, a intenção da plataforma não é de se resumir só a “shows virtuais”. “O YouTube é um espaço bom para produzir um show grande. A Twitch é o lado B da história. Não somos o show, somos o que acontece depois do show”, diz o executivo. “As pessoas não vão entrar na Twitch procurando uma playlist de um artista, elas vão procurar o artista”.
Para analistas, a expansão da plataforma pela música faz sentido, uma vez que existem boas conexões entre jogos e canções – é comum, por exemplo, que os jogadores fiquem escutando seus sons favoritos enquanto curtem o jogo da vez. “Quando a Twitch foi inventada, certamente não havia essa visão. Mas a beleza da coisa é a reutilização do potencial da plataforma, que amplia o potencial de audiência”, diz Luís Bonilauri, analista de mídia e entretenimento da consultoria Accenture.
Cachê
Para atrair os artistas, a Twitch teve de mostrar que podia ser uma nova fonte de receitas. É algo especialmente importante com a paralisação dos shows na quarentena. De cara, a plataforma permitiu que as estrelas virassem “afiliados”, categoria especial que libera uma série de ferramentas para faturar. Com ela, os músicos podem receber doações dos fãs durante suas transmissões ou cobrar uma assinatura mensal, de R$ 22,99, para dar acesso a conteúdos específicos – o valor só não é cobrado de quem assina o Amazon Prime, pacote de benefícios da gigante que custa R$ 10 por mês. Caso o usuário do Prime queira assinar mais de um canal por mês, o pagamento deverá ser feito à parte do seu pacote de benefícios.
Em seu site, a Twitch afirma ficar com 50% do valor das assinaturas. Segundo apurou o Estadão, a plataforma também retém 30% das doações – a empresa não confirma os valores. O restante dos porcentuais vai parar no bolso do artista, em uma conta mais benéfica que a oferecida por plataformas de streaming convencionais. “É possível ganhar US$ 1 mil na Twitch mais rápido do que no Spotify”, diz Lucas Silveira, vocalista da banda de rock Fresno.
Pioneiro da plataforma, ele tem uma conta no serviço desde 2016, usada para jogar videogame com membros de bandas como Far from Alaska e Supercombo. Durante a pandemia e sem shows, criou também um canal da Fresno, com programação ativa. “Na Twitch, existe uma cultura de apoiar e doar para seu produtor de conteúdo favorito, é algo que vem dos games”, afirma.
Contas
Considerado um dos principais criadores da plataforma, o jogador Nick ‘Nickmercs’ Kolcheff fatura US$ 148 mil por mês só com assinaturas. É um cenário que contrasta com o da indústria musical, que tem problemas para convencer o público de que deve pagar pelo que ouve – num reflexo após décadas de pirataria e preços altos. Se conseguir transferir essa “paixão” do mundo dos games para o da música, a Twitch pode ter um grande trunfo para tirar espaço da concorrência.
Com apenas dois meses de Twitch, Pitty diz ainda não conseguir estimar o impacto econômico da plataforma – o objetivo, diz, é focar no conteúdo. Já Lucas afirma que não substitui o que ganha na rede com o que recebia pelos shows. D2, por sua vez, indica que o caminho ainda é longo. “O que tenho faturado é bom, mas para viver de streaming, eu teria que duplicar ou triplicar os números”, diz, sem revelar números.
Do outro lado, analistas questionam se os planos da Twitch são sustentáveis a longo prazo – afinal, a empresa repassa o valor de uma assinatura de canal para os artistas, mesmo se o acesso do usuário for feito a partir do Amazon Prime, cuja mensalidade custa menos da metade. A estratégia da empresa, porém, pode estar de olho no longo prazo. “A Amazon exige retorno, mas não precisa criar imediatamente uma nova fonte de receitas. Ela pode transferir recursos para a Twitch de seus negócios de computação em nuvem”, explica Ted Chamberlin, analista da consultoria Gartner.
Segundo ele, a Twitch pode ser usada pela empresa para turbinar outras unidades de negócio, como a área de nuvem ou até mesmo o comércio eletrônico. “Artistas podem se tornar tão grandes a ponto de precisar de serviços específicos de nuvem”, afirma. Outra possibilidade, diz ele, é de que a empresa comercialize seu software de transmissão para a indústria musical – ao contrário do YouTube, a Twitch exige o download e a operação de um software dedicado para realizar as transmissões.
Paradoxo
Na visão dos artistas, a Twitch veio para ficar. “Quando o futuro chega, é impossível voltar atrás”, afirma Pitty, que pretende continuar transmitindo pela plataforma com o retorno dos shows após a pandemia. Lucas vai na mesma linha, acreditando que a transmissão de eventos pode até substituir turnês. “Fazer um evento de rock está ficando caro, como era promover uma orquestra antigamente”, diz o vocalista da Fresno. “Ao lançar um disco novo, fazer um show por streaming com doações poderia encurtar distâncias e gerar economia.”
Para ganhar espaço na indústria da música, porém, a Twitch precisa romper alguns nichos. O primeiro é o dos games, ainda visto como menor na indústria do entretenimento, a despeito de seu alto faturamento. Em abril, a plataforma registrou 17 milhões de horas de visualização na categoria de músicas e artes, alta de 385% contra o mesmo mês de 2019. O valor, porém, ainda representa 1% do tempo total de uso da Twitch naquele mês – os dados são das consultorias StreamElements e Arsenal.gg.
O segundo é o de entrar em gêneros musicais mais populares – e aqui no Brasil, isso significa duas palavras: sertanejo e funk. É algo que começou a mudar na última semana, quando a produtora de funk Kondzilla abriu seu canal na plataforma da Amazon. Com quase 60 milhões de inscritos no YouTube, a casa de artistas como Kevinho e Kekel quer ir além das lives de shows e gerar sua própria programação. “Não dá para depender de uma plataforma só, não podemos perder oportunidades de mercado”, diz André Izidro, diretor de marketing da empresa, criada pelo diretor Konrad Dantas.
Resta saber se o público também vai aderir a doações e assinaturas para gêneros populares – algo que Lucas, da Fresno, questiona. “A cultura de doação funciona melhor em gêneros segmentados como o rock, no qual o fã compreende seu papel no suporte ao artista”, diz ele. “Em gêneros populares, a relação com a música é mais casual.
Assim, o futuro da Twitch pode tropeçar num paradoxo. De um lado, precisa de nomes super populares para romper sua bolha. Do outro, talvez funcione melhor com artistas que já estão dentro do nicho. Seja como for, a plataforma da Amazon já mexe com a cabeça de quem a está vivendo intensamente, podendo criar seu próprio universo visual. “Gil Scott-Heron disse que a revolução não seria televisionada”, diz D2. “Ela será transmitida por live, irmão.”