Programa do Einstein detecta que 22% das cirurgias de endometriose são desnecessárias
Uma jovem faz uma cirurgia de endometriose, sofre uma perfuração no intestino, evolui para sepse, necessita de ventilação mecânica e fica internada mais de um mês.
O mais chocante desse caso real é que a paciente não tinha indicação formal para a cirurgia. Ou seja, quase morreu ao ser submetida a um tratamento desnecessário indicado pelo médico que a acompanhava.
O episódio serviu de mote para o Hospital Albert Einstein (SP) criar um programa que usa protocolos baseados em evidência para avaliar a pertinência da indicação da cirurgia. Quando há dúvida, um conselho de especialistas analisa o caso e dá a palavra final.
Um estudo com base nessa experiência, publicado no BMJ Open Quality, demonstrou que quase um quarto (22,2%) das indicações cirúrgicas da endometriose não têm necessidade.
No trabalho, também foram avaliadas indicações de cirurgias para a retirada da vesícula biliar (colecistectomias). A conclusão foi que 13% delas não tinham necessidade.
Além do risco aos pacientes, essas situações geram desperdícios que aumentam o custo em saúde. Ao frear a realização dessas duas cirurgias, a instituição estima ter economizado R$ 2,2 milhões.
No trabalho foram avaliados 430 casos entre 2020 e 2021. Cirurgias de urgência ou relacionadas a outros procedimentos (por exemplo, endometriose associada à remoção do útero) foram excluídas da análise.
Há hoje uma discussão mundial sobre procedimentos médicos com benefício mínimo ou nenhum, chamados de cuidados de baixo valor. Nos Estados Unidos, estudos estimam que 45% dos pacientes passem por essas situações todos os anos.
“São casos em que o risco do procedimento é muito maior do que o ganho que o paciente vai ter. A nossa taxa é menor, mas há procedimentos que não mereceriam ser feitos”, afirma Mauro Dirlando Conte de Oliveira, coordenador de práticas médicas do Einstein e primeiro autor do estudo.
Além da endometriose e da colecistectomia, o programa avalia o tratamento da nefrolitíase (pedra nos rins), cirurgia de coluna, procedimentos de radiofrequência para controle da dor articular, implante de stent venoso na síndrome de Cockett (compressão da veia femoral), aneurisma de aorta e exames de ecoendoscopia_que podem indicar incorretamente a necessidade de retirada da vesícula.
A iniciativa do Einstein funciona assim: todas as indicações de cirurgias ou de procedimentos para as condições acima são analisadas por duas enfermeiras pesquisadoras do departamento de práticas médicas da instituição.
Elas avaliam o relatório médico, a indicação, os exames e o conjunto de evidências que há nesses casos. Se os critérios são preenchidos, o procedimento é agendado.
Se houver dúvida, o caso é enviado para análise do grupo de especialistas. Para evitar conflitos éticos, dados do cirurgião e do paciente são mantidos anônimos. “Se não tiver indicação com base na literatura, ligamos para o médico e explicamos o motivo pelo qual a cirurgia não deve ser realizada”, explica Oliveira.
A primeira iniciativa do Einstein contra cirurgias desnecessárias ocorreu em 2013. À época, o programa detectou que 60% das indicações de cirurgias de coluna não tinham necessidade.
A ação do hospital causou polêmica entre os cirurgiões cujos diagnósticos foram questionados. Eles se queixavam que a restrição feria um preceito básico da ética médica –de um médico interferir ou mudar a conduta de outro. O caso foi discutido na câmara técnica de implantes da AMB (Associação Médica Brasileira), que o encaminhou ao Conselho Federal de Medicina.
Para Sidney Klajner, cirurgião do aparelho digestivo e presidente do Albert Einstein, hoje há mais maturidade da instituição, com discussões e compartilhamento dessas decisões com o corpo clínico.
“Temos um comitê de segurança do paciente, que chega a reunir 400 médicos. Aqui não é “eu acho que”, “eu penso que”. Tem que ter indicação baseada em evidência científica. Quem quiser continuar [com práticas sem evidências], vai ter que procurar um outro hospital.”
A primeira experiência do Einstein para uma segunda opinião em casos de endometriose ocorreu em 2018 dentro de um programa de saúde corporativa de uma empresa que tinha muitas funcionárias.
“Essas pacientes iam de profissional a profissional dentro da rede credenciada e tinham cirurgias de endometriose indicadas, sem resolução do problema”, conta Klajner, também autor do estudo. À época, de 12 pacientes com cirurgias indicadas, só duas tinham realmente necessidade da operação.
Segundo as sociedades americanas de ginecologia e obstetrícia e de medicina reprodutiva, a endometriose é considerada uma doença crônica, que requer um plano de gestão ao longo de toda a vida do paciente. Estudos mostram que em muitos casos é mais seguro e efetivo adotar um tratamento conservador, com medicamentos e/ou monitoramento da condição.
“Se você faz uma cirurgia de endometriose, há uma possibilidade muito grande de a paciente voltar a desenvolver novos focos. Existem pacientes que já fizeram várias cirurgias e continuam com o problema”, explica Mauro Oliveira.
Entre as indicações cirúrgicas validadas para endometriose estão casos de cistos no ovário entre 5 e 6 cm de diâmetro que não responderam à medicação, dor intratável e situações em que a paciente tem alguma obstrução, por exemplo, no ureter ou em grande parte do intestino, ou que deseja engravidar.
“Quando se retira todos os focos de endometriose do peritônio pélvico, é bem comum as pacientes conseguirem engravidar. Não se sabe ainda muito bem por que isso acontece”, diz Oliveira.
Sidney Klajner conta que, no caso da vesícula biliar, há situações de pacientes que tinham resultados normais no ultrassom convencional, mas que, ao serem submetidos a um exame mais sofisticado, por meio de endoscopia, apareciam microcálculos no órgão.
“É um falso positivo que não tem nenhuma relevância. Isso já era o bastante para indicação de colecistectomia, que não tem nenhuma razão de ser nesses casos.”
A literatura médica mostra que pacientes assintomáticos que não apresentam cálculos ao ultrassom convencional podem permanecer assim por toda a vida, não necessitando de cirurgia.
“O programa é uma tentativa de trazer a melhor prática para evitar desperdício e, o mais importante, trazer para o paciente o melhor tratamento, e não aquele que gera maior receita [ao médico e ao hospital]”, diz Klajner.
De acordo com o estudo do Einstein, nos últimos cinco anos, os custos anuais de colecistectomias eletivas e cirurgias para endometriose no hospital foram de US$ 1.577.380,57 (1.170 cirurgias por ano) e US$ 1.175.835,43 (380 cirurgias por ano), respectivamente.
Ao mesmo tempo, os procedimentos estiveram associados a 1,9% e 3,4% de complicações que exigiram readmissão dos pacientes em 30 dias. Isso resultou em custos anuais de US$ 80.815,66 e US$ 34.934,14, respectivamente.
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POR CLÁUDIA COLLUCCI