Como Anitta fez ‘Funk Generation’, o disco de funk mais ambicioso da história
No segundo semestre de 2022, Anitta reuniu um grupo de produtores e compositores, brasileiros e estrangeiros, para o primeiro de três “song camps” –reunião em que autores passam um tempo imersos na criação de novas músicas. As instruções chegaram até eles num documento em PDF.
Anitta tinha demandas exatas para o que viria a ser “Funk Generation”, seu novo álbum. Queria funks que remetessem à época dela na produtora Furacão 2000, na primeira década do século. Citou pontinhos -melodias- e aquecimentos -tipo de montagem- específicos como referência.
A nostalgia da cantora, que começou nesse estilo de funk do Rio de Janeiro, foi o pontapé para o trabalho. Partindo dali, três núcleos de produtores brasileiros colaboraram com compositores lugares do mundo para criar o disco de funk mais ambicioso da história.
Lançado nesta sexta-feira (26), “Funk Generation” dialoga com várias vertentes do estilo sob um verniz pop, com letras em inglês e espanhol e usando as batidas brasileiras para tentar conquistar o público do exterior.
Nos três encontros com produtores, Anitta circulou entre os núcleos brasileiros. Quem assinou a maioria das faixas do álbum foram Os Chapas, de Gabriel do Borel e Marcio Arantes. O resto quase todo acabou dividido entre o Brabo, de Zebu, Maffalda, Gorky e Pablo Bispo, e o Tropkillaz, de Zegon e Laudz.
Eles, por sua vez, se revezaram com produtores e compositores estrangeiros. Estiveram por lá integrantes da equipe do sueco Max Martin, nome por trás de hits de Britney Spears a Taylor Swift, a rapper dominicana Melymel, e a compositora americana de origem venezuelana Samantha Camara, entre muitos outros.
Em cada imersão, em Miami ou Los Angeles, eles começavam a trabalhar depois do almoço e podiam ir até de madrugada. A rotina poderia durar até dez dias seguidos. Anitta, afirmam os produtores, era sempre decidida. Chegava no estúdio, dizia o que gostava e o que não gostava, dava sugestões e logo partia.
Se gostasse muito de uma música, saía dançando e poderia entrar numa cabine para gravar na hora a voz –muitas vezes, o primeira take acabou sendo usado na versão final. No total, eles produziram cerca de 60 faixas, das quais 15 acabaram no disco.
Parte do processo foi explicar as nuances do estilo brasileiro a quem é de fora. “Tentamos mostrar os trejeitos do funk”, diz Marcio Arantes. “O jeito de cantar, a repetição de palavras, o uso da palavra com duplo sentido, a insistência em vogais, em recortar a palavra para brincar com ela como se fosse um DJ -enfim, tornar a parada um pouco mais rítmica no jeito de compor.”
Zebu lembra que Pablo Bispo improvisava versos em português para os estrangeiros entenderem as levadas. “Se não, fica com cara de rap”, diz. “Aí soa como um remix. E nossa ideia é que as coisas soassem como uma música própria. Também mostramos gravações a capella de MCs.”
Para Zegon, essa foi a parte mais difícil do trabalho. “Tentamos mostrar métricas que funcionassem em português e em inglês”, diz. “Tinha que funcionar bem também para o mercado global -principalmente o americano. O foco é expandir para esse mercado, mostrar essas batidas.”
Os brasileiros ajudaram também nas letras. “Quando não é um artista de hip-hop, eles querem fazer coisas mais ‘family friend'”, diz Zebu. “Mas, se for para ser funk, não pode ter limites. Explicamos essa coisa do brasileiro –falar, por exemplo, de ‘gozar’ é a coisa mais simples para a gente.”
Para Gabriel do Borel, único nome que construiu a carreira exclusivamente no funk entre os produtores, a comunicação foi a maior dificuldade. “Não sou fluente em inglês e todos só falavam em inglês o tempo todo”, diz. “Mas o bom da música é que ela é universal, e fomos trabalhando em conjunto.”
Algumas músicas surgiram de comentários de Anitta, como “Used to Be”. “Ela brincou que um dia queria fazer uma música dizendo que já foi puta, mas agora está tranquila”, diz Arantes. “Ali, todo mundo se olhou e já sabia. São coisas que a gente vai pescando. Tem que ficar esperto.”
“Used to Be”, que traz a letra inspirada no desejo de Anitta, foi lançada como prévia do projeto, assim como “Funk Rave” e “Casi Casi”. Elas integraram um pacote chamado “A Favela Love Story”, do ano passado.
Desde o lançamento dessas músicas, ficou evidente que o funk era o norte da nova era de Anitta. Há recortes de vozes e beatboxes antigos espalhados pelo álbum e também samples de batidas ou melodias de outras canções -caso de “Aquecimento do Galerão”, de Dennis DJ, interpolada por Gabriel do Borel e Arantes.
Mesmo quando não soam exatamente como um funk, as músicas têm referências indiretas ao estilo. Foi assim com “Aceita”, construída por cima de um sample trazido por Diplo, e que Arantes define como uma faixa com “um pouco do [ritmo sul-africano] amapiano no clima, um pouco de dembow e influências do funk”.
Quase tudo acabou ganhando um tratamento pop. Em “Cria de Favela”, Gabriel e Arantes usaram beatboxes de funk mesclados a batidas mais graves do tipo 808, melodias pop e arranjos no estilo Bollywood. Na segunda metade, a música foi emendada num trecho do que seria outra canção –uma produção com batidas de Miami bass feita pelo Brabo.
A equipe também assina “Grip”, que Zebu diz ter sido criada após um pedido de Anitta por algo no estilo Bonde do Rolê, antiga banda de Gorky. A música, com guitarras, tinha uma frase que desagradou a cantora. Ela cortou o trecho, diz o produtor, mas não quis nada no lugar -deixando, curiosamente, um espaço vazio na música.
“Sabana”, feita pelo Brabo, sampleia “Pelada”, do MC Jacaré, e remete ao estilo de funk minimalista feito em Belo Horizonte -só que “do futuro”, segundo Zebu. “Entre os produtores que participaram dos encontros, se tornou um dos instrumentais favoritos, incluindo os gringos”, diz.
Como em “Cria de Favela”, Anitta também pediu que outra música composta separadamente fosse amalgamada a “Sabana”. O coletivo então grudou um trecho de uma batida no estilo do funk de São Paulo feita a partir de “Thong Song” -hit de Sisqo que no funk ganhou a versão brasileira “Já é Sensação”.
Já os Tropkillaz, antigos colaboradores de Anitta, assinam “Lose Ya Breath”, com batida de Miami bass e um gancho de influência árabe. “[Os gringos] Trouxeram uma parte de violão meio Pharrell que achei interessante”, diz Zegon. “Eles têm uma visão [específica] de construção de música pop.”
Funkeiro de São Paulo, o DJ GBR contribuiu com um instrumento usado pelo Tropkillaz na música “Savage Funk”. “Foi uma das mais rápidas a serem aprovadas. Ela gravou a voz de primeira e já ficou essa mesma na final”, diz o produtor. “Demorou uma hora para ser feita. É bem simples, mas às vezes as coisas mais simples são as que mais pegam.”
“Love in Common” foi criada a partir de uma composição levada pelo produtor Jason Evigan, que já trabalhou com gente como Madonna e Maroon 5. “Demos o nosso toque e transformamos”, diz Zegon. “Não era um funk. A gente fez a batida e mudou a melodia.”
Já “Ahi”, esperada colaboração de Anitta com Sam Smith, teve produção da dupla de música eletrônica norueguesa Stargate. A canção, um funk 150 BPM, contudo, passou pelas mãos do Tropkillaz, que assinam a mixagem. “Pegamos para sujar, trocar os timbres, dar a sonoridade dela”, diz Zegon. “Demos uma ‘estragada’ na música.”
Com a expectativa de que vai mostrar o funk ao mundo, “Funk Generation” não é exatamente um retrato da produção atual do gênero no Brasil. O álbum é construído a partir de elementos de subgêneros do estilo de todas as épocas -do 150 BPM ao tamborzão, do melody ao beatbox, passando pelas variações paulista e mineira.
Para Zegon, o funk pode estar crescendo, mas ainda não está estabelecido no exterior. “O andamento do funk funciona com trap, com house e com o pop num geral. A gente vem sempre esperando que essa batida se espalhe pelo mundo. Foi o que aconteceu com o reggaeton.”
Já Zebu acredita que o investimento pesado em marketing de uma gravadora internacional pode aumentar as chances de “chegar nos ouvidos de pessoas que possam começar a entender”. “Entender como dança, o groove, é uma coisa meio complicada [para os estrangeiros]”, ele diz. “Mas rolou com o reggaeton, né?”
Para Gabriel do Borel, só a existência de um álbum tão grande dedicado ao funk já é motivo para comemorar. “Estamos vivendo um momento muito importante para o funk, que por muito tempo foi marginalizado”, diz. “Hoje estamos chegando a lugares que merecemos mesmo estar. É um dos ritmos mais envolventes e de fato populares, que é ouvido desde os bailes de favela até os condomínios de luxo de bairros nobres, em todo canto do Brasil. O funk muda histórias, como a minha”.
POR LUCAS BRÊDA