‘Até Mirassol’, por Lima Barreto
Domingo agora, dia 7 de maio, serão completados 102 anos de uma viagem que, desde o ano de 2021 e por intermédio do jornalista Marival Correa, cronista da região de São José do Rio Preto, vive no meu imaginário de leitor e, naturalmente, de escritor.
Na verdade, o 7 de maio é apenas o dia em que Lima Barreto (o autor carioca de ‘Triste Fim de Policarpo Quaresma’, nascido em 1881 e falecido em 1922) pôs o ponto final numa crônica iniciada em 23 de abril de 1921 narrando o embarque de trem saindo do Rio de Janeiro para o Interior de São Paulo, em 1º de abril de 1921.
O destino era Mirassol (a 180 quilômetros de Marília), cidade vizinha a Rio Preto, onde iria se encontrar com seu amigo, e também escritor, Ranulfo Prates. Sergipano, Prates era médico e, conforme narrou Marival Correa, “otimista de que pudesse convencer o autor de ‘Triste Fim de Policarpo Quaresma’ de que um copo de leite poderia ser mais irresistível que o melhor trago servido nos tentadores botequins cariocas.”
Lima enfrentava alguns desafios e sobrevivia às restrições da sua época. Gênio, escrevia com tamanha intensidade e talento que muitos o comparavam a Machado de Assis (1839-1908). Pouco antes de embarcar para as terras do Interior de São Paulo, o autor tinha experimentado sua segunda internação em um manicômio.
Experiência que ele relataria em ‘Diário do hospício e O cemitério dos vivos’, obra publicada postumamente no ano de 1953. A obra é dividida em duas partes – autobiográfica e texto ficcional – resultado da internação de Lima Barreto no Hospital Nacional de Alienados. Falecido prematuramente aos 41 anos, o escritor de ‘Clara dos Anjos’ legou para nós, leitores daquele futuro de 102 anos atrás, textos excelentes literários e jornalísticos. ‘Até Mirassol’, está entre as narrativas ligadas às suas crônicas.
Entre os anos de 1993 e 1994 foi ao ar pela rede Globo a novela ‘Fera Ferida’. Por aqueles anos, na adolescência, eu começava a descobrir a obra de Lima Barreto – que achava ser o mesmo que dirigiu o filme brasileiro ‘O cangaceiro’, de 1953. Pensava que Lima Barreto que dirigiu ‘O cangaceiro’, o primeiro longa brasileiro a conquistar o público no exterior, se tratava do mesmo autor das narrativas que estavam sendo levadas na trama das oito pela Globo, entre elas ‘A Nova Califórnia’ e ‘O homem que sabia javanês’.
Estava totalmente equivocado, pois se tratava de um homônimo, ou seja, pessoas que possuem nomes idênticos. O Barreto cineasta era do Interior paulista, havia nascido em 1906 e falecido em 1982, e seu primeiro nome era Victor. O escritor, havia nascido em 1881 – sete anos antes da abolição da escravatura – no Rio de Janeiro, falecido em 1922 e seu primeiro nome era Afonso, sendo o único registro pelo Interior paulista ocorrido no ano anterior ao da sua morte.
Raimundo Flamel, o alquimista que em ‘Fera Ferida’ foi interpretado pelo ator Edson Celulari (natural de Bauru, a 100 quilômetros de Marília), naqueles primórdios dos anos de 1990, ditou moda para os jovens. Era comum a gente usar a camiseta do ‘Flamel’, inspirada em batas e roupas exóticas. Tive três ou quatro camisas ‘à Flamel’, e foi uma das primeiras vezes que adotei um figurino inspirado num personagem da novela. Raimundo Flamel, assim como Policarpo Quaresma, nasceu da mente criativa de Lima Barreto.
No ano em que morreu, 1922, além de ter sido o centenário da Independência do Brasil, os modernistas paulistanos lançaram a Semana de Arte Moderna. Muitas vezes ácido nas críticas, Mário de Andrade (1893-1945) teria reagido negativamente às observações de Lima Barreto sobre a revista ‘Klaxon’, o veículo impresso oficial da corrente e ideais modernistas. Vaticinou para Lima Barreto um menosprezado título de ‘escritor de bairro’.
À época, isso soou bem negativo, principalmente no meio intelectual. Antes todos os bairros do Brasil tivessem um escritor do calibre de Lima Barreto e a nossa independência não seria colocada à prova com tantas ameaças que sofremos, sempre de quando em quando. Mário errou feio, ao meu ver, em minimizar o talento universal de Lima. Erros, enfim, acontecem.
Lima inspirou grandes escritores do século XX, incluindo João Antônio (1937-1996) e Osman Lins (1937-1978). Lins, que escreveu ‘Lisbela e o prisioneiro’, entre outras obras, viveu em Marília. O brilhantismo de Lima Barreto, apesar da sua dura realidade, prova que a arte alimenta não apenas o corpo, mas, sobretudo a alma e o espírito. Leiam Lima Barreto não só ‘Até Mirassol’, mas sim por todo o sempre!
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Ramon Barbosa Franco é escritor e jornalista, autor dos livros ‘Canavial, os vivos e os mortos’ (La Musetta Editoriais), ‘A próxima Colombina’ (Carlini & Caniato), ‘Contos do japim’ (Carlini & Caniato), ‘Vargas, um legado político’ (Carlini & Caniato), ‘Laurinda Frade, receitas da vida’ (Poiesis Editora) e das HQs ‘Radius’ (LM Comics), ‘Os canônicos’ (LM Comics) e ‘Onde nasce a Luz’ (Unimar – Universidade de Marília), ramonimprensa@gmail.com