A vida é feita de dobras. Dobramentos, duplicações, dublês. Coincidências e reincidências imperfeitas, estranhamente familiares.
Aprecie, por exemplo, este causo. Estou eu, ligeiramente intoxicado, sentado com amigos no Chaplin neste último sábado, quando reparo a irresistível elegância de um par de óculos de sol David Beckham portado por um dos homens ali da mesa. Nocauteado por tal beleza, começo a relatar, melancolicamente, as duas vezes que perdi um Persol, óculos de sol italiano imortalizado pelo ator Jude Law no filme “O Talentoso Ripley.”
A primeira vez que perdi um Persol foi em 2014, em um churrasco com amigos daqui de Marília, essas confraternizações de fim de ano que nem sequer deveriam existir. A segunda vez foi mais recente, há exatamente um ano, em uma festa da medicina da Unimar. Em ambos eventos, meus óculos – o mesmo modelo Persol, a mesma cor, idênticos, gêmeos siameses – misteriosamente “sumiram,” mas não sem deixar aquele gosto amargo na boca, exacerbado pela memória de que falta um parafuso neste último par, o que me dá esperanças fúteis de algum dia identificar o objeto furtado na face de quem o traja, inocentemente ou não.
Pois bem, eis que, perante meu relato, justamente o homem portador dos óculos cativantes me conta que, já há algum tempo, ele quase perdeu aquele mesmo par que eu tanto admirava. “Foi em uma festa rave,” ele me dizia, “pedi para um amigo procurar comigo, fizemos cada um uma meia-lua gigante na arena que estávamos e la fomos cada um a procura do mesmo par de óculos, nos encontrando no fechamento do grande círculo, com as caras mais tristes que uma rave já viu. E ali aconteceu um milagre… no exato momento em que nós dois nos lastimávamos,” meu amigo continuou, acalorado, “eu senti que havia pisado em alguma coisa, e o que era? Meus óculos!! Que por mais sorte ainda não quebrei, meus óculos, intactos, olhando e sorrindo pra mim, no chão de uma rave com mais de mil pessoas pulando.”
Quase com lágrimas nos olhos, eu me lembrei, silenciosamente desta vez, da vez que havia perdido meu primeiro Persol em uma balada em Freiburg na Alemanha, com o detalhe que somente naquela vez tive a insubstituível felicidade de encontra-los no chão da mesma, às 5 da manhã quando ali voltei, desesperado. Mas as coincidências não pararam por ali. O que está por vir me abalou filosoficamente, e me despertou novamente o desejo de escrever, a começar por esta crônica, fantasiosa ou não.
Subitamente chega na mesa um homem esbelto trajando, na gola V de sua T-shirt, um par de óculos Persol exatamente igual ao meu!!! Um registro em parêntesis: abomino o uso promíscuo de pontos de exclamação mas talvez estejamos, na primeira vez na historia da literatura portuguesa, perante à uma excepcional exceção)
Eu não me contive. Lacan, psicanalista francês herdeiro de Freud, descreveria meu estado como jouissance, um orgasmo intelectual que, como todo orgasmo, é intimamente ligado a sua frustração. Com um entusiasmo que sinto só quando o São Paulo ganha uma Libertadores ou quando minha filha me liga do nada, passei a contar ao homem que sequer me conhecia — e que também chamava Rodrigo (!!!) — tudo o que tento relatar aqui, apontando a ironia deliciosamente irresistível que, assim como meu amigo havia encontrado o par de óculos dele da forma mais surpreendente possível, eis que, logo após o relato de tal milagre, surge um homem homônimo, um sósia com óculos exatamente iguais aos meus, raríssimos de serem vistos em uma província como Marília. Havia eu também encontrado meu par perdido? É claro que não, mas será?! E mesmo assim, como não sentir na carne esse dobramento, essa dupla curvatura da realidade camuflada em máscaras e dublês?
Rodrigo, O Segundo, cagou e andou pra minha historia. Reservado, limitou-se apenas a dizer: “estes óculos são meus.” Eu tentei, juro que tentei, expor a beleza irônica da analogia a quatro partes (A : B :: C : D), mas em vão. Sequer cheguei a examinar de perto os óculos do meu xará — a dúvida cruel permanece — que parece possuir talentos para negócios sérios e pouco ambivalentes. Confesso que senti tristeza, mas a tristeza é melhor amiga da alegria, e cá estou eu, a escrever, contente. A imaginar uma leitora que dê risada desses espelhos falsos que a vida constantemente nos traz, algo entre mero acaso e cartomante, destino e coincidência, tragédia e comédia.
E você, viu algum Persol perdido por aí? Lembre-se de que o objeto de análise em questão – um PAR de óculos – contamina a suposta imparcialidade do examinador, dobrando e filtrando a visão, escondendo ou escurecendo o sol que tudo ilumina, salvo o meu PerSOL que nas trevas ainda permanece.
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Rodrigo Bueno Therezo escreve crônicas para o Marília Notícia quinzenalmente. É pianista clássico formado pela DePaul University School of Music, com doutorados em Literatura, Psicanálise e Filosofia pela Universidade de Freiburg, Alemanha. Atualmente cursa medicina na Universidade de Marília e está terminando seu segundo livro intitulado “Fontes de Prazer: Freud, Derrida, Pessoa.”