Lei de deputado beneficia empresa da qual é sócio
Uma lei de autoria do líder do governo na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), deputado Carlão Pignatari (PSDB), beneficiou uma empresa da qual ele é acionista e prejudicou um laboratório público estadual que integra o Hospital das Clínicas (HC). Com uma mudança na Política Estadual de Medicamentos, a lei praticamente impediu o governo de vender um sofisticado produto hospitalar para entidades filantrópicas, e assim eliminou o principal concorrente da companhia da qual o deputado é investidor.
De acordo com sua declaração de renda, Carlão tem R$ 625,6 mil em ações da Indústria Brasileira de Farmoquímicos (IBF), com sede em São José do Rio Preto (SP). Em 2011, ele chegou a presidir uma assembleia geral de constituição da empresa, com presença de todos os acionistas fundadores.
A IBF é um dos três laboratórios paulistas com registro na Anvisa para fabricar o produto FDG (18 F), essencial para o exame PET-CT – tomografia usada no diagnóstico de câncer. Hoje, no entanto, o mercado desse insumo no Estado é disputado apenas pela IBF e pela Cyclobras, de Campinas. A mudança na legislação barrou as vendas do FDG pelo Instituto de Radiologia (InRad) do HC, ligado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Com produção própria, o instituto comercializava sobras que não eram usadas internamente no hospital. A receita das vendas bancava a produção e uma série de pesquisas científicas em medicina nuclear.
“Para fazer uma ou 100 doses, é o mesmo custo”, diz o diretor executivo do InRad, Marco Bego. “Não tinha nenhum custo para a rede pública, nem para o HC. Era uma das poucas áreas do HC que só dependiam da sua operação.” O InRad vendia o insumo para 12 hospitais filantrópicos da capital – entre eles o Albert Einstein, o Sírio-Libanês e o Oswaldo Cruz. A venda para entidades particulares era feita por meio da Fundação para o Remédio Popular (Furp), ligada à Secretaria Estadual de Saúde.
A lei proposta por Carlão restringiu a venda do governo para entidades filantrópicas apenas “para uso exclusivo no diagnóstico ou tratamento de pacientes atendidos pelo Sistema Único de Saúde”. Na prática, os hospitais não conseguem separar o produto só para pacientes do SUS. Isso resultou na suspensão das compras de todos os hospitais conveniados com o InRad.
O corte de receitas levou o HC a cogitar o fechamento do centro de pesquisas, que teve investimento público de R$ 7,7 milhões. Até a alteração, o laboratório não precisava de aporte do governo. A receita do InRad com a venda das sobras do FDG era estimada em R$ 700 mil por mês, o suficiente para cobrir os custos da equipe e da manutenção e investir em pesquisas.
Suspensão
A Cyclobras, única concorrente da IBF após a edição da lei, chegou a ter a venda do produto suspensa em outubro pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), que regula a produção de produtos radiofármacos no País. Durante seis dias, enquanto durou a suspensão, a IBF se tornou a única fornecedora do insumo em todo o Estado de São Paulo. Procurada pela reportagem, a CNEN não respondeu sobre os motivos para a suspensão.
À reportagem, a Secretaria de Saúde disse que não identificou nenhuma outra consequência da lei para a rede pública. Os prejuízos ficaram restritos ao HC.
Ao longo deste ano, Carlão compareceu a várias sessões da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou a Furp na Alesp, apesar de não ser membro efetivo da CPI. O governador João Doria (PSDB) já declarou que tem a intenção de repassar as fábricas da fundação para a iniciativa privada.
Após tramitar como projeto de lei, a proposta do deputado foi vetada em 2017 pelo então governador Geraldo Alckmin. O governo alegava que a medida era inconstitucional, pois criaria desigualdade no acesso aos medicamentos, e que a política do SUS “é regida pelo princípio da universalidade, que garante pleno acesso aos serviços de saúde estatais, não sendo lícito fazer qualquer tipo de distinção entre seus usuários”.
O texto tramitou por mais de um ano e meio na Alesp até o veto ser derrubado. O projeto foi incluído em um pacote votado em sessão extraordinária, em dezembro de 2018, na chamada “janela do fim de ano”.
Fontes de hospitais particulares estimam que, desde então, o preço do FDG já subiu cerca de 15%. O produto custa cerca de R$ 700 por exame. Considerados apenas os principais hospitais filantrópicos da capital, há uma demanda de ao menos mil exames PET-CT ao mês.
Para esses hospitais, não só o custo do produto ficou mais elevado como é necessário comprar em maior quantidade dos laboratórios IBF e Cyclobras, localizados no interior paulista. Isso porque o FDG, como qualquer produto de medicina nuclear, é altamente perecível. O InRad tinha a vantagem de estar localizado na capital.
O FDG é fabricado com um acelerador de partículas, chamado cíclotron, próprio para a produção de insumos da medicina nuclear. Desde que a lei impediu a venda, o InRad tem de se manter com o dinheiro do faturamento em anos anteriores. As reservas devem durar até fevereiro. “Ou a gente fecha o cíclotron e começa a comprar FDG para o HC e para as pesquisas em andamento, ou a gente arranja alguma forma de voltar à operação original, autossustentável”, disse Marco Bego, da Inrad.
Defesa
Procurado, o deputado Carlão Pignatari não quis comentar sobre o fato de ser acionista da IBF. Por meio de nota, limitou-se a dizer que “a lei em questão não proíbe o Instituto de Radiologia de vender 18F-FDG aos hospitais filantrópicos de SP, como o Einstein, Sírio-Libanês e HCor; sequer trata dos negócios do InRad (do HC)”. O deputado disse ainda que “tratar a questão dessa forma confunde os leitores do jornal com uma informação inverídica e tendenciosa. Nem mesmo a Furp produz o 18F-FDG”.
“A medida legislativa foi estabelecer que um órgão público como a Furp deve se dedicar, prioritariamente, ou mesmo, exclusivamente, à saúde pública, aos pacientes do SUS, principalmente àqueles que não têm recursos para pagar do próprio bolso ou convênios médicos.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.