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‘CDHU’ da Zona Sul: crônica de um desastre anunciado

O título faz referência ao do livro de ficção “Crônica de uma Morte Anunciada”, no qual o escritor colombiano Gabriel García Márquez narra o assassinato do protagonista Santiago Nasar.

A história subliminar, nas entrelinhas, é: qual motivo levou a cidade inteira a deixar que o crime ocorresse, sem tentativas sérias de salvar a vítima?

Recentemente presenciamos desastres no litoral paulista que mataram dezenas de pessoas.

Neste ano, Marília está sendo notícia: riscos de desabamento no Conjunto Habitacional Paulo Lúcio Nogueira (CHPLN) na zona Sul da cidade; divergências de conservação entre blocos em novo relatório do CDHU sustenta “que anomalias só foram encontradas em prédios que não teriam recebido ações de manutenção por condôminos”, e; “Mulher de 55 anos morre em incêndio no CDHU, encontrada já desacordada em seu apartamento, localizado no terceiro andar do bloco F1”.

Enquanto debate-se nos tribunais, a corrida é contra o relógio. A segurança dos moradores dos 880 apartamentos é responsabilidade nossa, de toda a cidade: olhar com compaixão e com empatia é revelar valores e responsabilidade solidária.

Ou a tragédia tatuará na carne mariliense manchetes negativas nacionais e internacionais.

Podemos, sim, fazer a diferença. Com olhar humanista, gestores públicos, técnicos e cidadãos devem se unir e elaborar arranjos eficazes visando a qualidade de vida destas pessoas.

Assim, a primeira solução, mais simplista, mais conservadora e menos criativa, é a de recuperar estruturas prediais ou de demolir os edifícios afetados parcial ou inteiramente, reformando-os ou os reconstruindo.

Nesse caso, é essencial desenvolver um plano sensível e eficiente, compreendendo o problema em sua totalidade, analisando minimamente as estruturas prediais, as infraestruturas, a acessibilidade e a segurança. Estudos e pesquisas subsidiariam justificativas e decisões – se a drástica demolição é mesmo a única solução ou se outras ações eficazes e menos impactantes poderiam ser adotadas -, sempre pelo diálogo, por consultas públicas envolvendo a comunidade afetada e buscando parcerias com os governos estadual e federal, instituições e especialistas na área de urbanismo.

Sendo necessária a radical remoção dos residentes, garantir a transição por moradias temporárias, enquanto as ações acima se desenrolem. Considerar impactos na qualidade de vida dos moradores pela análise de transporte público, de acesso a serviços básicos (educação, saúde, segurança), da proximidade de áreas de comércio e de lazer, além das condições de habitação (como ventilação, iluminação e privacidade).

Gera adesão da população às autoridades criar uma central de informações e, sendo possível, porta-vozes responsáveis por comunicação competente e confiável sobre a resolução dos problemas enfrentados pelos moradores, coleta e respostas rápidas diante de eventuais incertezas e fragilidades. Todos passam a acreditar na empreitada e a apoiar, criando círculo virtuoso.

Identificar os recursos financeiros disponíveis, tanto para realizar as obras quanto para manter o condomínio. Mais: o sucesso pleno é treinar moradores e prepará-los para administrar, motivando-os a atuarem como síndicos e zeladores bons e qualificados. Apenas os reconduzir e esperar por uma gestão condominial espontânea – inexistente até hoje – é, como diz o provérbio popular, loucura: querer resultados diferentes fazendo tudo exatamente igual.

Com todas as informações em mãos, criar e divulgar cronogramas etapa por etapa. Datas e prazos projetados para demolir construções condenadas, para melhorar áreas comuns, para construir novas moradias temporárias e permanentes, para criar espaços de convivência, verdes e de lazer, bem como implementar serviços essenciais, como água, internet, energia e transporte.

Durante todo o processo, revisar constantemente a disponibilidade de recursos humanos e de materiais e alterar a legislação urbanística com apoio da Casa Legislativa, quando necessário.

Urbanistas contemporâneos criticam conjuntos habitacionais como esse. Para eles, o formato tradicional falha em gerar comunidades saudáveis e vibrantes. São grandes blocos de construção, monótonos e afastados do tecido urbano, com ruas pouco movimentadas e sem atividades nas áreas comuns.

Ambientes assim são pouco atraentes para as pessoas se reunirem e se interagirem, gerando sentimento de afastamento, de alienação, prejudicando o senso de comunidade.

A cidade norte-americana de Chicago enfrentou uma série de desafios habitacionais semelhantes a esse nas décadas de 1960 e 1970. Após denúncias, as autoridades públicas repensaram as políticas habitacionais. Mudaram o foco: criaram o programa de moradias acessíveis, como o “Chicago Housing Authority” (CHA), fornecendo habitações de qualidade para famílias de baixa renda, substituindo os projetos antigos por comunidades diversificadas, integradas e mais seguras.

Economicamente, Chicago também estimulou o deslocamento de empregos e de serviços para as áreas habitacionais de baixa renda, reduzindo a distância e os custos entre locais de moradia e de trabalho, promovendo o desenvolvimento sustentável e o lazer, melhorando a qualidade de vida dos moradores e combatendo a segregação e a desigualdade habitacional.

Diante disso, há uma segunda solução: fazer mais e melhor com menos recursos e boa gestão. Não se gerencia o que não se mede e não há sucesso no que não se gerencia: daí a importância de informações, números e dados precisos para tomar decisões estratégicas. Vejamos uma possibilidade das muitas em comandar, em gerenciar bem.

Com a virada do século XXI, iniciou-se o declínio demográfico mundial: a taxa de nascimentos diminuiu e as taxas de envelhecimento e de mortes aumentaram. Resultado: como exemplo e em 2010, o governo russo planejou fechar 60 cidades porque o número de pessoas estava encolhendo e envelhecendo. Manter serviços públicos nestas localidades se tornou inviável.

Marília também viu migrar boa parte da população para condomínios periféricos em razão do recente “boom” imobiliário. A consequência: aumento dos vazios urbanos – mais terrenos e imóveis ociosos nos bairros tradicionais e central, drenando a economia local e desconsiderando a função social da moradia.

Somados as 2 análises, talvez inexista déficit habitacional municipal diante dos números populacionais decrescentes ou com pouco crescimento, além de eventual programa municipal organizado de estímulo a ocupar edificações subutilizadas.

Portanto, bases de dados confiáveis e precisas podem orientar políticas públicas.

Há exemplos? Além das norte-americanas Chicago e Nova York, há a sul-africana de Gauteng, a chinesa Shenzhen e a cidade de Surabaia, na Indonésia: programas habitacionais populares vitoriosos.

Para isso, perspectiva diferente da adotada até o momento. Os gestores públicos e os planejadores urbanos devem assumir-se tais a uma equipe bem coordenada de síndicos e zeladores, monitorando indicadores de eficiência, disparando alertas e agindo como facilitadores, não criadores ou moldadores da cidade.

Iniciativas assim são específicas dos habitantes dos aglomerados urbanos, com apoio de uma rede de estruturas físicas e administrativas asseguradas pelo prefeito e pelos vereadores.

Substituir a condição atual do Conjunto Habitacional Paulo Lúcio Nogueira por espaço urbano mais orgânico, diversificado e inclusivo, onde as pessoas possam interagir e construir comunidades vibrantes e sustentáveis é oportunizar qualidade de vida e condições dignas de moradia.

A receita exige muito trabalho, diálogo e resiliência.

Sobretudo, coragem e capacidade de executar.

Sucesso. Sempre.

. . .

Marcos Boldrin é ex-secretário do Meio Ambiente, ex-secretário da Administração, urbanista, palestrante e coronel da reserva.

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Marcos Boldrin

Marcos Boldrin é coronel da reserva, urbanista e arquiteto de formação, e ex-gestor público estadual e municipal

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