Poder de compra cai com o fim da era da ‘comida barata’
O mariliense de hoje nunca pagou tão caro e nem enfrentou – de forma tão grave – o risco real de escassez de alimentos. Isso porque o principal índice global de preços para gêneros alimentícios, apurado pela Organização das Nações Unidas (ONU), atingiu em março o maior nível em 61 anos, combinado com série histórica do Fundo Monetário Internacional (FMI), que aponta recorde em cem anos.
O patamar atual supera as marcas do período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e da primeira crise mundial do petróleo (1973-1974), segundo a ONU. Os dados do FMI sugerem que o atual cenário fica atrás somente do nível registrado após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Aos 80 anos de idade, mais de 60 vivendo em Marília, o calheiro aposentado Sebastião Vicente Noslak – descendente de austríacos – conta que viu os rendimentos minguarem. Ele recebe um salário mínimo e diz que, mesmo sendo organizado nas finanças, consegue fazer cada vez menos.
O aposentado se queixa também da variedade e qualidade dos alimentos. “Você vivia melhor, comia de tudo. Hoje, mal tem o que comprar. Você compra o que tem, pagando cada vez mais caro”, lamenta.
O aposentado diz não se conformar que o Brasil, sendo produtor eficiente de carne, por exemplo, permite que sua população pague tão caro pela proteína. “Nos EUA, nos países da Europa, não é assim. Primeiro, olham para sua população. Já aqui, tudo que tem de melhor vai para exportação? Por que tem que ser assim?”, questiona.
Silvana Calvento Gimenez, comerciante do camelódromo, vende roupas. Ela diz que a despesa de supermercado triplicou. Já o movimento na loja caiu, como em todo o comércio popular.
“Levo o mais barato, o que está mais em conta. Demoro bem mais para fazer as compras, procurando ofertas, fazendo cotação. O ganho da gente não acompanha. Sem comer ninguém fica. Já a roupa, dá para usar até rasgar”, afirma.
CRISE DO PETRÓLEO
O professor e pesquisador Marcos Cordeiro Pires, do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Unesp Marília, lembra que os alimentos tiveram uma redução muito grande ao longo do tempo. As novas gerações só agora estão sabendo o que é pagar caro pela comida.
“Na década de 70 houve um período de grande inflação, gerado pelo aumento no custo do petróleo. Isso deixou o nível de preços fora do lugar no mundo inteiro. Alguns países conseguiram resolver a situação no começo dos anos 80. O Brasil só resolveu em 1994, com o Plano Real”, explica.
ESTABILIDADE E TECNOLOGIA
A estabilidade econômica teve também outros aliados. “A tecnologia contribuiu muito para o aceso ao alimento. A criação de novas sementes, as transgênicas, a melhoria genética dos frangos, dos porcos, do rebanho bovino. Tudo isso impactou positivamente”, relata o pesquisador.
O Brasil avançou ainda no planejamento da produção, qualidade dos insumos, acesso aos fertilizantes. Máquinas mais inteligentes, cientistas e técnicos mais preparados levaram ao melhor aproveitamento da terra, o que aumenta produtividade e reduz preço.
“Do início do Plano Real, até mais ou menos 2011, passando pelo buraco da crise financeira de 2008, o preço do alimento era relativamente barato. O preço de um quilo de frango ficava abaixo de um dólar. Hoje, está dois dólares. O arroz, durante uns 15 anos, custou menos de R$ 10”, lembra Pires.
O QUE DEU ERRADO?
Além dos erros do modelo de desenvolvimento global, a conjuntura mudou. “É uma realidade. O mundo não está configurado para alimentar os pobres, mas para aumentar os lucros dos ricos. Hoje, há um processo de desenvolvimento rápido em dois países que têm populações de 1,4 bilhão”, alerta o professor, em referência à China e à Índia.
Escassez e aumento de preços são gerados pela explosão da demanda, em um caos retroalimentado que os avanços da produção brasileira [e de nenhum outro país] conseguem resolver.
“Se hoje aumenta a demanda por carne na Ásia, quem paga somos nós, porque o preço fica mais caro a nível mundial. Combinado a isso, novamente o petróleo, insumo que perpassa por toda a cadeia do agronegócio, está mais caro”, afirma o professor.
Sempre é citado o transporte, mas Cordeiro Pires lembra que o combustível para tratores e máquinas, pesticidas e parte dos fertilizantes também derivam do petróleo. É o custo de produção no campo nas alturas, arrastando a tudo como efeito cascata.
AÍ VEM A GUERRA
Desde o fim da segunda guerra mundial, a Europa não via guerra entre duas nações em seu território. “Conflitos trazem dificuldade de suprimentos de alimentos, no caso da Ucrânia e Rússia, principalmente o trigo e o milho”, explica.
No Brasil, além da questão dos preços, o pesquisador ressalta outra consequência: a dependência dos fertilizantes da Rússia e Bielorrússia. “Somos dependentes de potássio, um dos três principais fertilizantes (junto com fósforo e ureia). Os custos, que já estavam extremamente elevados, simplesmente explodiram com a guerra”, contextualiza.
DESISTÊNCIA NO AGRO?
Com o câmbio favorável às exportações – há anos – as commodities brasileiras têm ajudado o governo a bater recordes de arrecadação. Foi o que permitiu, por exemplo, aumentar os gastos públicos para enfrentamento à pandemia.
Porém, a explosão nos custos chega a níveis alarmantes. O que significa, na visão do professor, que a rentabilidade dos produtores é apenas aparente. Diante do custo de produção exorbitante e falta de expectativas de lucro, o campo pode “tirar a mão do arado” e acentuar a crise a parâmetros sem precedentes.
É um processo semelhante ao que ocorreu com a indústria nacional, no passado recente. Sem condições de competir com os importados (principalmente da China), sobretaxada por pesada carga tributária, empresas deixaram de produzir. Muitos dos que não faliram, viraram importadores.
HERANÇA COLONIAL
O contexto histórico brasileiro, Marcos Cordeiro ajuda a responder o questionamento do aposentado descendente de austríacos, que vive em Marília, e não entende o desprestígio do país para com os próprios brasileiros.
“Temos que lembrar que o Brasil foi criado para ser uma colônia. Quando começaram a plantar cana-de-açúcar, não era para fazer rapadura para os negros e nem para os indígenas, era para colocar o produto no comércio internacional. Com o café, foi o mesmo… Produto para exportação. As elites daqui são coloniais. Elas se preocupam com seu dinheiro, não com comida para pessoas mais pobres”, conclui.