Mariliense detalha sua quarentena e retirada da China pela Força Aérea
O mariliense Caleb Guerra, 28 anos, é formado em letras e literatura em mandarim na China, onde vive há nove anos e cursa o mestrado em literatura chinesa clássica em Wuhan, cidade fechada no final de janeiro na tentativa de conter o avanço do novo coronavírus.
Ele fez parte de um grupo com mais de 30 brasileiros que se mobilizou para que o Governo do Brasil providenciasse uma missão de resgate.
Além de apelar para a grande imprensa, eles também gravaram um vídeo que repercutiu bastante na internet e teria sido decisivo para o retorno.
Na gravação, o grupo pediu diretamente ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e ao chanceler Ernesto Araújo para ser resgatado.
Caleb embarcou em um dos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) que foi buscar os repatriados e chegou ao Brasil no começo do mês.
Assim como os demais brasileiros trazidos de volta – e outros 27 membros da equipe do governo – ele precisou ficar em quarentena por 14 dias em uma base aérea de Anápolis (GO), seguindo o procedimento preconizado pelo Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Durante o período, entre outros protocolos de segurança, eles tiveram de utilizar máscaras quase o tempo todo, inclusive durante atividades físicas – e só foram liberados após três testes darem resultado negativo para a doença que assusta o mundo.
A experiência do confinamento foi contada por Caleb em uma série de artigos publicada no jornal O Estado de São Paulo intitulada “Relatos da Quarentena”. O jovem também deu entrevistas para veículos como BBC.
Nos últimos dias, Caleb chegou na cidade em que nasceu, onde seus pais e outros familiares vivem, e conversou com o Marília Notícia sobre o drama vivido por ele, os demais brasileiros e seus amigos chineses de Wuhan.
O rapaz se encontra totalmente integrado com a cultura da China, país que hoje chama de lar.
Entre os assuntos que podem ser lidos na entrevista abaixo, o jovem fala sobre os sentimentos dúbios, de alívio, mas também tristeza, por ter de deixar a China em tais circunstâncias.
Marília Notícia: Como foi a experiência de estar em quarentena? Você já conhecia algumas das pessoas que ficaram durante esses dias com você na base de Anápolis?
Caleb Guerra: Eu conhecia [algumas pessoas]. Nós fizemos um Natal na casa de um dos meninos e eu conheci algumas pessoas que estavam na cidade [Wuhan]. Mas a maioria [dos repatriados] a gente se conheceu no ônibus [providenciado pela embaixada brasileira] indo ao aeroporto. Eu me arrisco a dizer que não houve necessariamente um desconforto [em estar em quarentena]. O ambiente que eles criaram ali em Anápolis excedeu muito as nossas expectativas. Não nos detalharam muito como seria essa quarentena, o que a gente sabia era que seria uma base militar. Por base militar você pensa: dormitório, beliche, chuveiros um do lado do outro. Quando chegamos, tinha um campo enorme, bandeiras que delimitavam onde a gente podia chegar ou não, a gente podia correr, tinha verde, tinha uma tenda enorme onde ficava passando filme praticamente o dia inteiro… A gente assinou um contrato, se submeteu ao período de quarentena, mas na mente de cada um a gente não esperava que seria tão humanizado. Independente do plano de fundo político da galera, todo mundo ficou muito agradecido aos militares. O agradecimento generalizado aos militares da FAB, todo mundo achou que deveria ser feito. A galera chorou para sair de lá. Os militares realmente trataram a gente muito bem. Por mais que a gente não podia sair de onde as bandeiras limitavam, a gente tinha um espaço que pessoas de outros países não têm. Tenho amigos que estão passando quarentena na França, na Inglaterra. Eles perguntavam assim ao ver fotos que publicávamos: “nossa vocês têm ar livre?”. A galera da Coreia está de quarentena dentro de um hospital. A gente se sentiu muito bem acolhido. Achamos que por serem militares, seria uma coisa mais mecânica, fria. Mas foi uma coisa extremamente carinhosa e até flexível, eu diria. Claro que a gente não podia negociar mediar a temperatura, pressão. Mas eles perguntavam o que a gente queria comer. Pedimos pizza, coxinha. Claro que tudo que entrava, tinha que passar pela Anvisa. Eles trataram a gente muito bem. Em Anápolis foi um período mais tranquilo para todo mundo. A gente esperava uma coisa mais dura, treinamento militar.
MN: Como era a rotina de vocês durante a quarentena?
CG: Eles mandava a programação do dia pra gente na parte da manhã. Sempre tinha algo para fazer durante a tarde e pela noite. Sempre era filme de noite e pela tarde alguma apresentação, a galera vinha tocar sanfona, tinha isso. A gente recebia esse cronograma de manhã. A maioria das pessoas que veio da China é de estudantes. Tem gente que assistia aula online, tem gente que precisa de crédito, então tinha gente que estudava de manhã. Nós acordávamos por volta das 7h ou 7h30, tomávamos café. Os militares pegavam a comida primeiro, para não ficarmos circulando muito ali perto da cozinha. Então os militares pegavam a comida primeiro, depois de uns 15 minutos a gente pegava e ia comer cada um no seu quarto, não podíamos comer juntos. Não podíamos ficar juntos, cada um no seu quarto. Mas na área livre a gente podia interagir. Então a gente acabava de comer e ia para a área livre e quem estava entediado ficava conversando ou jogando, tinha videogame, jogo de tabuleiro. Fica entediante com o tempo. A gente achava que a manhã passava mais rápido. As pessoas faziam exercício. Tinha muita reunião também, com Ministério da Saúde, Anvisa, para tirar dúvidas. Tinha terapia em grupo, para os militares uma hora, e para nós, em outra hora. Tinha psicólogas do SUS [Sistema Único de Saúde] disponíveis lá pra gente. E o pessoal recorria a elas. Foi muito estressante para todo mundo, mas para algumas pessoas foi uma experiência muito traumática [deixar a China por conta do coronavírus]. Tem gente que estava lá há pouco tempo. Mas a gente conseguiu sair de lá… No finalzinho [da quarentena] estávamos até brigando muito uns com os outros. É a convivência, né?
MN: O que te levou a aceitar escrever o Diário de Quarentena, para o Estadão?
CG: A gente tinha a impressão de que os jornalistas e pessoas que comentam online estavam cometendo muitos equívocos. Wuhan é uma cidade importantíssima no Centro da China, sempre foi, historicamente, e continua sendo. E o coronavírus não tinha um rosto. E a gente via as pessoas fazendo piada online com os chineses. Mas para nós o coronavírus tinha, sim, rostos, vozes. Temos amigos na cidade. Escrever para o Estadão foi muito da ideia de querer humanizar essa questão. Aceitei escrever para mostrar que tem gente ajudando, que no fim das contas, é uma cidade fechada em prol do mundo todo. É o povo de Wuhan que está lá dentro e eles estão se dispondo a isso. As pessoas saem na janela e gritam diariamente “Wuhan Jiayou” e vão se comunicando. “Jiayou” significa literalmente “colocar gasolina”. É uma frase de incentivo muito usada em jogos de futebol. Então eu quis falar um pouco do povo de Wuhan, que eles estão se ajudando por lá. Eles têm essa consciência coletiva muito forte. Tem pessoas que saíram para trabalhar e a cidade foi fechada, ficaram com gatos e cachorros isolados em casa. Tem pessoas alimentando esses animais pela janela. A galera está se ajudando. Eu queria humanizar um pouco essa questão.
MN: E como foram os momentos anteriores à retirada dos brasileiros que estavam em Wuhan? Vocês precisaram se mobilizar para o Governo Brasileiro buscar vocês.
CG: Quando a cidade fechou, depois de uns dois ou três dias, começamos a conversar muito no grupo de brasileiros que já tínhamos no aplicativo chinês WeChat. Você tem diferentes perfis de brasileiros em Wuhan, tem aqueles que chegaram “ontem” e os que chegaram há bastante tempo. Eu, por exemplo, moro com um chinês que tem carro. Nos primeiros dias, pegamos o carro dele, fomos ao mercado, fizemos uma dispensa enorme. Eu me sentia muito seguro naquele contexto. No começo, quando me perguntavam se eu queria voltar, eu falava que queria ver o andamento das próximas semanas, pois eu me sentia ainda muito seguro. Mas alguns brasileiros já não, estavam em dormitórios, se sentiam muito isolados. Quando a cidade fechou, no dia 24 de janeiro, tinha gente bem e gente que estava muito mal já. Quem mora dentro das universidades, por exemplo. Tem campi que são enormes, com linhas próprias de ônibus. Esses ônibus deixaram de circular. E quem mora ali tinham que caminhar meia hora pro mercado. A mobilidade fica reduzida, isso é muito estressante. Então, entendendo que é Direito dos brasileiros fazerem esse tipo de petição [de retirada do país], como em qualquer lugar em que tem uma catástrofe é possível fazer essa solicitação ao governo brasileiro, e percebendo que outros países estavam retirando os seus cidadãos que estavam em Wuhan, a gente escreveu uma carta aberta primeiro. E a gente quis fazer uma coisa pro público mesmo, e fizemos o vídeo, que deu uma visibilidade grande para falar que a gente queria voltar. A gente se ajudava muito lá também. As pessoas estavam ficando muito ansiosas, principalmente quem estava lá há pouco tempo, afinal você não conhece bem a língua, conhece poucas pessoas, liga a TV e só tá falando em mandarim. E quando recebemos o aviso do governo para informarmos se queríamos vir embora, surgiram outras questões. Nós temos vidas lá, o que eu faço com o aluguel que vence no fim do mês, a cachorra que eu tenho em casa, a empresa que eu trabalho? Preciso avisar meus tutores, devolver os livros. Cada um tinha a vida para colocar em ordem em poucos dias e nós fomos nos ajudando. Criamos um SOS financeiro, em que discutíamos cada caso, e se necessário fazíamos uma vaquinha. Tivemos muita organização.
MN: Seus amigos chineses estão bem? Qual o sentimento deles no momento?
CG: Amigos muito pessoais, graças a Deus, não tenho nenhum caso deles com a doença. Mas eu tenho o WeChat e recebo todo tipo de notícia. Recebo notícia de amigos que estão ajudando pessoas que ficaram infectadas e não tinham família na cidade. Tenho amigos que estão se voluntariando muito. Mas tem amigos de amigos que foram infectados pelo vírus e estão sendo tratados. Desde antes de Cristo, na mentalidade confucionista, o bem de uma sociedade é sempre mais bem visto do que o bem individual. E não é uma coisa política. É uma coisa cultural chinesa. Sacrificar um sonho individual que você tem em prol da sua família é o normal na cultura chinesa. Então os chineses de Wuhan têm uma visão muito otimista [com o fechamento da cidade]. “Estamos servindo ao mundo, estamos sendo os pioneiros no processo de contenção da doença”, eles têm a mentalidade de que ajudando na estabilidade mundial, a liberdade de sair de casa é cerceada e estão felizes com isso. Eu recebi mensagens nesse sentido. Admiro muito os chineses nesse ponto, eles são muito hospitaleiros. Meu tutor, meus colegas de classe me escreviam todo dia, perguntando como eu estava. Eles estão trabalhando muito em conjunto. Na China existe um costume em que as pessoas gostam muito de dançar em praças. As velinhas estão dançando as mesmas músicas nas janelas, em prédios que ficam uns de frente para os outros. Tenho amigos que publicam esses vídeos, postam essas mensagens no Instagram. Claro que isso não extingue o lamentar da situação, ninguém está feliz com o vírus. É lamentável. Wuhan é uma cidade de 11 milhões de habitantes, muito viva, muito ativa. Você não vai a lugar nenhum sem ficar uma ou duas horas no trânsito. De repente ver isso acontecendo, é lamentável, é triste. Mas os chineses veem uma catástrofe como forma de se organizar para o bem-estar mundial.
MN: Em um de seus textos para o Estadão você conta como estava extremamente integrado com a cultura local, chama Wuhan de lar. Deixar sua casa por conta de uma catástrofe deve ser muito duro…
CG: Ninguém quer sair de lugar nenhum nessa situação. A gente quer sair com uma festinha de despedida… Minha decisão de voltar não foi individualista também. Eu levei em conta a saúde emocional dos meus pais, que moram em Marília, liguei pro meu tutor na universidade, sempre pensando “se eu ficar doente, quais são as pessoas que vão ter que me acompanhar?”. Fui conversando com muita gente, pesando na balança e decidi voltar. A gente quer voltar com alegria… É uma ruptura, eu moro na China há nove anos. Desde então, minhas memórias estão totalmente entrelaçadas com a cultura chinesa, com a língua chinesa. É uma coisa neurológica, neuropsíquica. Todo mundo voltou triste. Todo mundo teve seus próprios motivos para voltar. E todo mundo voltou cabisbaixo, chateado. Algumas pessoas talvez não entendam isso, o quão ambígua é a alma do ser humano. A gente tinha uma vida lá. Claro que certas pessoas do grupo já estavam em um certo limite emocional. E a gente ver essas pessoas seguras, nós mesmos, nossas famílias, é um alívio. Acho que uma coisa não anula a outra. As pessoas querem muito que as coisas sejam “isso, ou isso”. Ou você volta arrependido, ou volta batendo tambores. E não é bem assim. Nós voltamos aliviados, felizes, mas grande parte de nós, chateados. É um drama, uma cidade de 11 milhões de habitantes parada, sem carros na rua, apagada.
MN: Quais as principais diferenças e quais as aproximações existentes entre as culturas brasileira e chinesa?
CG: O choque cultural inverso [quando a pessoa vivencia um certo ‘estranhamento’ ao voltar para sua terra natal após período fora do país] é muito real. A gente na rua, minha mãe me abrançando… chinês não é muito de contato físico e aqui no Brasil as pessoas são muito disso, a gente tá na rua e quem está ao seu lado está colocando o braço no seu ombro. Eu falo “mãe, ainda não” [risos]. Sobre similaridade: nem nós, nem os chineses, somos europeus. Então somos mais hospitaleiros. Nesse quesito estamos muito juntos. Outra diferença, o povo brasileiro pensa mais no curto prazo, imediatista, e o chinês, o povo é mais histórico, ligado à tradição, e possui um pensamento mais a longo prazo. Quando você pergunta para um brasileiro sobre a vida, ele vai falar sobre o agora. O chinês vai falar sobre os próximos 20 anos. O chinês vive mais observando uma linha do tempo e o brasileiro vive mais o hoje, o agora. Não é um juízo de valor, são constatações. Apesar da hospitalidade, outra diferença é que na cultura chinesa os sentimentos não são muito expostos. Quando você encontra alguém na China, essa pessoa não pergunta como você está. Eles perguntam se você comeu. Quando você aprende saudar outras pessoas em mandariam, você não aprende “olá, como vai?”. Você aprende “olá, você comeu?”. Não tem muita conversa sobre como você está se sentindo. A gente [os chineses] acaba resolvendo os sentimentos mais individualmente. E chegando no Brasil tem um pouco do choque cultural reverso nesse sentido também, todo mundo querendo saber como você está se sentindo.
MN: Quais suas expectativas sobre voltar para Wuhan?
CG: A gente está num limbo, né? Uma das meninas do grupo, que tem um filho, ela se forma este ano. Ela defenderia a dissertação em maio e se graduaria em junho. E agora ninguém tem certeza de nada. Tem pessoas que trabalham lá, que são casadas com pessoas de lá, são famílias. Então a gente está esperando. Eu obviamente preciso terminar esse mestrado, não faz sentido parar esse mestrado agora. Falta um ano e meio e quero fazer doutorado. Não quero ser displicente com minhas decisões com ninguém. Não quero voltar e ficar doente. Então volto quando estiver seguro, quando abrirem a cidade. Estou em contato com minha universidade, quero ver o que eles vão responder. Esperar o tempo. Não mais cedo que maio, dizem. Mas pode ser só em junho, julho. Espero que tudo isso termine logo.