Entrevista da Semana

‘Toque, fala ou condutas não consentidas são inaceitáveis’, reforça delegada

Delegada Darlene Costa Tosin, titular da DDM em Marília, preside principal inquérito (Foto: Divulgação)

À frente de uma investigação complexa, que já envolve dezenas de possíveis vítimas e têm como investigado um profissional de saúde até então insuspeito, a delegada Darlene Costa Tosin – titular da Delegacia de Defesa da Mulher – falou ao Marília Notícia em entrevista especial nesta semana.

Ela preside o principal inquérito que apura crimes atribuídos a um psiquiatra de 43 anos, preso preventivamente após ser citado em mais de 20 denúncias de importunação sexual e dois casos de estupro consumado. Em nota oficial, a defesa do médico nega as acusações.

Os supostos crimes teriam ocorrido em um ambiente onde as mulheres – todas pacientes – deveriam se sentir mais seguras: o consultório médico.

Delegada vê relevância e divisor de águas; ajuda a entender tipo penal relativamente novo (Foto: Divulgação)

Para a delegada, o caso tem relevância histórica e muda a perspectiva sobre um crime que está previsto na legislação desde 2018, mas nem sempre é claramente compreendido.

A importunação sexual, que fere a intimidade, pode agredir tanto fisicamente quanto moralmente, pode ser uma “porta de entrada” para violências íntimas mais graves.

Para a delegada, a perplexidade causada por esse crime torna ainda mais evidente: não se trata de comportamento, mas de crime. Confira a entrevista.

Marília Notícia – Doutora, esse caso recente tem chamado muita atenção. Podemos dizer que é um dos maiores da região – ou que já tenha visto?

Darlene Costa Tosin – Sim, Trata-se do maior caso de importunação sexual já registrado na região de Marília, envolvendo um número expressivo de vítimas e situações de extrema sensibilidade.

Apesar de minha experiência em diversas investigações relacionadas à violência, este caso, em especial, tem um impacto profundo no aspecto emocional, tanto das vítimas, que revivem momentos de constrangimento e dor, quanto de toda a equipe policial, que conduz a apuração com rigor técnico, mas também com empatia e respeito à dignidade humana.

MN – Exige uma abordagem mais sensível por parte da Polícia Civil?

Darlene – Exatamente. A sensibilidade tem que aumentar. É preciso ter empatia com a vítima para conseguir ouvir e entender o que ela viveu. Essas mulheres chegam muito fragilizadas. Elas procuraram ajuda médica e, em vez disso, foram violentadas emocionalmente. Muitas se sentiam culpadas, sujas, como se tivessem provocado a situação. Foi muito triste ouvir os depoimentos.

MN – Como a DDM de Marília se estrutura para lidar com casos tão complexos?

Darlene – Nossa equipe é formada por mulheres altamente capacitadas para realizar qualquer tipo de atendimento. Escrivãs e investigadoras passam por constante preparo para acolher vítimas de violência com sensibilidade e profissionalismo. Além da escuta qualificada, realizamos o encaminhamento à rede de apoio, garantindo que o acolhimento seja contínuo e que nenhuma mulher permaneça desamparada em momento tão delicado.

MN – A senhora poderia explicar o que é o crime de importunação sexual? Parece que estamos falando de algo sutil.

Darlene – Sim, é um tipo penal relativamente recente, inserido no Código Penal em 2018, após uma reforma que modernizou a legislação sobre crimes sexuais. A importunação sexual se situa entre o assédio e o estupro, ocorrendo quando alguém busca satisfazer a própria lascívia sem empregar violência ou grave ameaça. São situações como beijos forçados, toques indevidos ou comentários de teor sexual, que, embora não envolvam agressão física, geram profundo constrangimento e abalo emocional nas vítimas.

MN – É como o crime de furto, mal comparando com o roubo, porém na modalidade sexual?

Darlene – Sim, a comparação é válida. Nesse tipo de crime, a violência não se manifesta de forma física, mas emocional, por meio de uma invasão sutil e devastadora da intimidade. Não há necessariamente uma ameaça explícita, mas existe a quebra do consentimento e da segurança da vítima, o que torna a conduta profundamente violadora e traumática.

MN – Muitas vítimas demoram para denunciar, por quê?

Darlene – Sim, praticamente todas mencionaram essa dificuldade. Muitas diziam: “era a minha palavra contra a dele, e ele é médico”. Existe um peso social muito grande nessas situações. O autor era visto como uma figura de autoridade e credibilidade, o que fazia com que as vítimas se sentissem inferiores, desacreditadas e impotentes. Muitas acreditavam que não seriam ouvidas ou que suas denúncias não teriam valor. Foi justamente a união dessas vozes que deu força ao caso — e a divulgação pela imprensa também teve um papel essencial para encorajar outras mulheres a se manifestarem.

MN – A primeira vítima que falou com o nosso site disse algo marcante: “espero que apareçam outras, porque ele não fez só comigo.” O que a senhora acha disso?

Darlene – Sim, sem dúvida. A coragem de uma acabou encorajando as demais a também denunciarem. Ainda assim, elas chegaram muito abaladas emocionalmente — houve choro, crises de ansiedade e até mal-estar durante os relatos, pois reviveram momentos extremamente dolorosos. É importante destacar que essas mulheres não se conheciam entre si, mas, mesmo assim, os depoimentos apresentaram um padrão muito semelhante na forma como os abusos ocorreram e na conduta adotada pelo autor, o que reforça a gravidade e a consistência das denúncias.

MN – O que a senhora percebeu sobre a saúde mental dessas mulheres?

Darlene – Embora eu não seja profissional da área da saúde, é evidente o impacto psicológico profundo que esse caso causou. Muitas vítimas, ao apenas mencionarem o nome do autor, demonstram forte abalo emocional, como se um gatilho fosse acionado. Percebe-se que carregaram esse trauma em silêncio por muito tempo, e o simples ato de reviver as lembranças já provoca choro, angústia e sofrimento intenso.

MN – A prova nesse tipo de crime é basicamente testemunhal? Como funciona?

Delegada – Exatamente. Em crimes sexuais, assim como nas situações de violência doméstica, as condutas geralmente ocorrem em ambientes reservados, sem a presença de testemunhas. Por isso, a palavra da vítima assume especial relevância, desde que seja coerente, firme e esteja em harmonia com outros elementos de prova. Neste caso específico, o padrão de comportamento do autor se repetia com todas as vítimas, que sequer se conheciam entre si. Essa reiterada forma de agir permitiu o reconhecimento do crime continuado, circunstância que eleva a pena de um a dois terços, conforme previsto na legislação penal.

MN – Em geral, em importunação sexual, há situações menos evidentes? Há vítima que fica em dúvida se o que viveu é crime?

Darlene – Sim, isso acontece com frequência. Muitas mulheres duvidam do que viveram, tentam minimizar o ocorrido ou acham que “não foi nada demais”. Mas é importante deixar muito claro: qualquer ato de conotação sexual sem consentimento é crime, e a lei reconhece isso.

Na Delegacia de Defesa da Mulher, a vítima será ouvida com respeito e acolhimento, e receberá toda a orientação necessária. Nenhuma mulher deve se calar por medo, vergonha ou dúvida. Quando alguém invade a sua intimidade sem o seu consentimento, isso não é um mal-entendido — é uma violação, e deve ser denunciada.

MN – Os casos de importunação sexual têm aumentado?

Darlene – Sim, temos observado um aumento significativo nas ocorrências de importunação sexual e, de forma geral, em todos os crimes contra a dignidade sexual. Esse crescimento não significa, necessariamente, que os crimes estejam acontecendo mais, mas sim que as vítimas estão se sentindo mais seguras para denunciar. A ampla divulgação dos casos, o trabalho da imprensa, das campanhas educativas e das redes sociais têm contribuído para romper o silêncio e mostrar que essas condutas não são normais nem aceitáveis. Hoje, as mulheres reconhecem seus direitos e confiam mais nas instituições de proteção e justiça.

MN – Onde essas situações costumam acontecer?

Darlene – Os casos de estupro, em sua maioria, acontecem em ambientes privados, especialmente no contexto familiar ou de convivência, onde o autor tem acesso e domínio sobre a vítima. Já as situações de importunação sexual ocorrem com mais frequência em locais públicos ou profissionais, em que o agressor se aproveita de uma situação de proximidade ou distração para praticar o ato, geralmente sem violência física direta, mas com claro intuito libidinoso e sem consentimento.

Em ambos os casos, o que se observa é uma violação à dignidade e à liberdade sexual da mulher, que deve sempre ser denunciada.

MN – O que as pessoas denunciadas dizem quando estão diante da polícia?

Darlene – A violência sexual não escolhe lugar, profissão ou classe social — ela está presente em todos os contextos. Em muitos casos, há relação de hierarquia ou poder, como chefes, profissionais de referência ou pessoas que se aproveitam da posição que ocupam para praticar o abuso.

Quando confrontados, alguns autores tentam justificar a conduta, alegando que a vítima teria “consentido” ou “provocado”, numa clara tentativa de transferir a culpa. Esse tipo de argumento não se sustenta juridicamente e reforça a necessidade de combater a cultura de culpabilização da mulher, que ainda persiste em nossa sociedade.

MN – Como saímos disso? Esse caso pode ser um divisor de águas em Marília. O que aprendemos?

Darlene – Esse caso nos faz refletir sobre a importância de não naturalizarmos comportamentos abusivos, em nenhuma circunstância — seja com crianças, adolescentes ou adultos. Expressões comuns, como “dá um abraço”, “senta no colo do tio” ou “não foi nada demais”, precisam ser repensadas porque ajudam a normalizar atitudes que violam limites e invadem a intimidade.

É fundamental compreender que qualquer toque, fala ou conduta sem consentimento é inaceitável. Precisamos reforçar, como sociedade, que não é normal, não é brincadeira e não pode ser tolerado.

Carlos Rodrigues

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