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Só um tapinha não dói…

Quantas vezes você fez o que não gostaria de ter feito? Pior, quantas vezes a sua ação saiu exatamente oposta, diametralmente contrária, ao seu pensamento? Pior ainda, caros, não é real a noção básica, que psicólogos aprendem na primeira aula da faculdade, que entre o que se pensa e o que se fala, e entre o que de fala e o que se faz, há dois abismos, um do tamanho dos Andes e outro do tamanho do Everest? E, o mais legal de se notar, acontece todos os dias com todo mundo. De perto ninguém é normal.

Qual é a novidade, então? A novidade é que agora está filmando em 4k e, uma vez na internet, qualquer tropeço, minúsculo ou enorme, ficará mais imortal que Machado de Assis. Ninguém esqueceu ainda, por exemplo, do caso Rafinha Bastos perdendo a boa na TV ou do nude do Stênio Garcia ou da Xuxa mandando a Cláudia sentar lá ou do Fábio Assunção sofrendo de adicção e pagando fianças. Bem ou mal, se caiu na internet, já era…

Uma vez feita esta meia culpa clássica, acho que temos condições de pautar melhor o caso Chris Rock x Will Smith. Entre mortos e feridos alguns se salvarão e, se é pra ter um lado, vocês que me perdoem, mas eu sou um maluco no pedaço desde pequenininho. Porque, na verdade, fiquei bastante apegado à noção de que precisamos olhar melhor e mais cuidadosamente é para a psicologia deste assunto, que me parece a chave exata para abrir a polêmica da noite de premiação do Oscar. Olhar psicologicamente dentro da polêmica, abri-la, descortiná-la, para além deste julgamento intelectualmente bobinho de quinta série do tipo “nada justifica a violência”.

Falando em psicologia, conhece o mito de Édipo? Ele é usado todos os dias pela psicanálise nos quatro cantos do mundo, e é desconhecido para a maioria de nós mortais. Porém, é impressionantemente atual em pleno outubro de 2022, mesmo que inventado há milênios, um clássico dos clássicos! Ei-lo: Édipo é o nome dado ao filho primogênito de um Rei, chamado Laio. Laio pede a Creonte, seu cunhado, que vá consultar um oráculo sobre o destino do recém-nascido e, sem que pudesse evitar, recebe a triste notícia daquele oráculo que o bebê Édipo é um fratricida, ou seja, que já, já matará o próprio papai. Laio, morto primeiro de medo com o vaticínio do oráculo, manda um empregado assassinar o seu filho recém-nascido Édipo para evitar a desgraça futura. O empregado, todavia, descumpre as ordens diante da covardia de matar um bebê inocente e abandona-o em um vilarejo. Édipo cresce e uma vez crescido vai, espontaneamente, ao mesmo oráculo de outrora saber do seu destino e a mensagem volta: matarás o seu pai. Sem saber que era adotado, e pelo medo de matar o homem que tem por pai, foge do vilarejo e no caminho encontra o Rei Laio, seu verdadeiro pai, o biológico, que entre impropérios e duelos é assassinado pelo filho. Édipo mata o rei e para melhorar, mais tarde, casa-se com a rainha Jocasta, isto é, casa-se sem saber com a própria mãe. Fratricida e incestuoso, o assassino do pai e o marido da mãe, o tal do Édipo será então um monstro? Ou ele não fez nada além de seguir à risca um destino horrível desenhado no onisciente oráculo de Apolo?

Sigmund Freud usou bem deste mito grego, a tragédia de “O Édipo Rei” do dramaturgo Sófocles, para fundir uma das bases mais conhecidas do método psicanalítico clínico, que deu às nossas questões psíquicas uma abordagem revolucionária: a cura através da fala. E o que eu quero falar, a plenos pulmões, é que há um forte lado edipiano nesta história toda, do cinematográfico e infeliz e polêmico tapa na cara desferido pelo Will Smith.

Vejam bem, o ator nasceu e cresceu na Filadélfia, que é a maior e consequentemente uma das mais violentas cidades do Estado da Pensilvânia, isto entre as décadas de 1960 e 1980, época que ninguém tinha internet ou celular com câmera para denunciar formas sutis de violência moral. Na Pensilvânia, perto de Nova York, já houve uma das mais famosas e nojentas sedes da Ku Klux Klan, instituição de racistas e supremacistas brancos que tinham por atividade diletante perseguir e escarnecer da população preta dos EUA, quando ninguém tinha internet ou celular com câmera para flagrar reuniões absurdas de racismo organizado. Will Smith é preto em um país onde a população afro descendente é de aproximadamente 14% do todo apenas. Veio de uma família de classe média que, mal comparando, se pensarmos no padrão de consumo estadunidense, é a mesma coisa que uma família brasileira que hoje corre atrás da inflação e tem o nome no Serasa. Qual destino o oráculo de Apolo teria dado para Will Smith? Observada estas condições, ou se valendo da ideia básica de que o meio condiciona um homem, creio que uma vida preenchida com episódios de violências.

Mas Will Smith dobrou o destino. Primeiro, notabilizou-se na música e cultura Hip-Hop, que grosso modo é o que chamamos no Brasil de Rap (Rhythm and Poetry, Ritmo e Poesia), arte dedicada nas décadas de 1980 e 1990 à explicitar preconceitos e unir a população preta, pobre, periférica, numa linguagem de pertencimento. Não bastasse o sucesso na música, mais tarde Will Smith inicia uma carreira apoteótica na dramaturgia com a série “Um maluco no Pedaço” e daí pra frente ele voa! Com uma filmografia de fazer inveja, dos filmes que eu assisti deste ator maravilhoso eu recomendaria, pelo menos, os três volumes de “MIB – Homens de Preto”, “Independence Day”, “Inimigo do Estado”, “Eu, robô”, “Hitch”, “A procura da felicidade”, “Sete vidas”, “Beleza oculta” e o mais novo e brilhante “King Richard”, filme biográfico das irmãs Venus e Serena Williams, as maiores tenistas da Terra. No caso, Will Smith interpreta o pai das atletas e, com este papel, recebeu semana passada o Oscar de Melhor Ator. O que o oráculo de Apolo teria dito para ele adulto e bem sucedido? Você ainda está condenado ao futuro infame da violência, o sucesso é só um drible no destino que recairá na sua vida.

Não é todo mundo que se acostuma bem à ideia de que um homem preto que veio da classe média é hoje um dos profissionais mais bem pagos do planeta. Esta ideia é para alguns mais confusa ainda quando assumimos assertivamente que ele é de uma origem nada esplêndida e, mesmo assim, está maravilhosamente entre os melhores do seu meio faz tempo. Isto, com certeza, dói bastante lá no fundinho do coração dos racistas, que só o esperando um deslize para cultivar um ódio escamoteado em grupos sórdidos e online, onde todo mundo fica valente.

E deslizes acontecem. O curioso é que não é a primeira vez e nem será a última que a comédia/humor leva alguém a subir a serra, perder a racionalidade, transgredir o socialmente aceitável. E, acredite, hoje nós não vamos discutir qual é o limite do humor. Porque não precisa. O fato objetivo é que Chris Rock, ator e comediante, fez uma plateia ilustre rir à beça da cara da esposa de um ator indicado a uma premiação de altíssima honraria, em evento transmitido ao vivo para o mundo todo, numa piadinha que reverberou ao vivo na casa de literalmente centenas de milhões de espectadores. Jada Smith, esposa de Will Smith e alvo da sátira, sofre de uma doença autoimune, isto é, uma doença que não tem cura, que implica em queda crônica de todos os pelos do corpo e cabelo, e que geralmente leva a pessoa a ter dificuldade de autoestima e receio da vida pública.

Após a piada, Will Smith perdeu a boa, mas não perdeu a elegância, foi pleno e bonito no passinho edipiano até Chris Rock e o estapeou com um golpe de direita na frente do mundo todinho. Sentou-se e gritou da cadeira “Keep my wife’s name out of your f** mouth!”, ou “Deixa o nome da minha esposa fora da p** da sua boca!*, traduzindo dentro dos limites do meu inglês macarrônico. O que o oráculo de Apolo teria dito? Agora sim, Will, um preto irascível diante de uma provocação, cumpriu seu destino e vai pagar por tal. Will Smith internou-se por tempo indeterminado para tentar curar-se do descontrole que o levou às vias de fato. Alguns contratos estão suspensos ou cancelados por causa do tapa, segundo as empresas que colocaram o ator na geladeira. Desocupou, por escolha, a posição de membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (Academy Awards). Talvez devolva a estatueta de melhor ator. E, enquanto isto, curiosamente, o Chris Rock lota um teatro depois do outro nos EUA, como se fosse plausível achar que não foi extremamente violento ofender a cônjuge Jada, em nome do riso, diante do planeta, ao vivo e a cores.

O pessoal que curte a psicanálise freudiana seguramente diria algo do tipo: o id do Will Smith tomou de assalto o super-eu numa situação de estresse e confundiu o seu juízo moral, manifestando assim no eu do ator uma volta momentânea ao estado primitivo de violência, para que ele fizesse o que fez. E mil perdões, caros, neste último parágrafo eu quis mesmo me exibir um pouquinho… É que, na verdade, eu precisava criar um ensejo para passar este pano póstumo que eu sempre tive vontade de passar: obrigado Freud, sua psicanálise é realmente uma benção que deixa a vida, se não melhor, mais viva. E, só para finalizar, por favor, pelo amor de Deus, por tudo que é mais sagrado, você que me lê, vai fazer terapia logo! Por que? Porque todo mundo sem exceção precisa se cuidar mentalmente. E, na verdade, a gente está muito mais sujeito a dar e levar tapas na cara do que poderíamos presumir. Eu mesmo, com 30 anos, já levei dois.

Lucas Taoni

Professor Taoni é Geógrafo e mestre em História e leciona na rede de escolas particulares de Marília e região.

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