Colunas

Fora dos autos: histórias que a vida conta

Amâncio tinha um pequeno sítio nos arredores da cidade, onde mourejava com afinco. Plantava, capinava e colhia, na dinâmica diária de lavrador humilde.  Era alto e forte, com a pele crestada pelo sol. A característica mais marcante que o distinguia era o enorme bigode, cuidado com esmero e que lhe emoldurava o rosto severo.

Casado com Dolores, morena de olhos verdes, com trinta e poucos anos, não tinham filhos. O tempo ia passando, monótono e tedioso, até que Dolores, cansada da vida pacata e sem emoções, apaixonou-se pelo retireiro de uma fazenda vizinha, jovem, sedutor e de fala mansa. Certa madrugada fugiu com o tal rapaz sem deixar qualquer explicação a Amâncio.

Este, dolorido e humilhado pela traição da mulher, prometeu vingança. E procura aqui, pergunta dali pesquisa acolá, acabou descobrindo que os fujões estavam morando na periferia da cidade.  Armou-se de peixeira e aqui veio bater os costados, com o ódio a lhe corroer as entranhas.

E quis o destino, por uma dessas coincidências inexplicáveis, que tão logo desembarcou na antiga estação rodoviária e caminhou alguns quarteirões, deu de cara com aquele que fugira com sua amada. Este, ao ver o marido traído, ficou imóvel e transido de pavor, enquanto que Amâncio, sem poder conter a ira, sacou da peixeira e com um golpe certeiro trespassou o coração do desafeto que lhe roubara a mulher, matando-o instantaneamente. Foi preso em flagrante e recolhido ao xadrez.

Conseguiram-lhe um advogado dativo, já que não quisera contratar nenhum por sua conta. O jovem advogado, no ímpeto de fazer o melhor, convenceu o bigodudo cliente a contar ao Juiz outra a versão, ou seja, de que fora atacado injustamente pelo amante da mulher e então, para se defender, não teve alternativa que não o golpear com o punhal.

Quando do interrogatório, ao prestar a versão engendrada pelo jovem causídico, titubeou, gaguejou e ficou inseguro. O juiz, homem experiente e perspicaz, fez ver ao acusado que não acreditava naquela estória de legítima defesa, até porque não havia razão alguma para o ataque do ladrão de sua mulher.

Diante dessa observação, Amâncio, ferido em seus brios, levantou-se abruptamente e deslizando os dedos sobre o imenso bigode, saiu-se com esta: “Doutor, esse bigode nunca viu essa boca mentir. O Senhor tem razão. Furei mesmo o cabra safado que fugiu com a minha mulher. E essa história de legítima defesa foi esse advogado que inventou e me mandou contar para o Senhor”.

O advogado, rubro de vergonha, saiu sorrateiramente da sala de audiências e correu para preparar a renúncia da defesa do Amâncio que, a partir de então se tornou réu confesso e passou a aguardar com sua honestidade preservada, a condenação que certamente viria.

Décio Mazeto

Ex-juiz da 3ª Vara Criminal de Marília, Décio Divanir Mazeto atuou por 34 anos na magistratura

Recent Posts

Produção científica leva Unimar ao topo de participação no principal congresso jurídico

Evento reuniu pesquisadores de diferentes regiões do país (Foto: Divulgação) A Universidade de Marília (Unimar)…

36 minutos ago

Marília garante R$ 1 milhão em nova emenda para ampliar investimentos na saúde

Gestão destaca reformas concluídas, novas unidades em construção e reforço de verbas federais (Foto: Divulgação)…

36 minutos ago

Administração de Pompeia reforça transparência em balanço anual

Em uma live, prefeito Diogo Ceschim e sua equipe anunciaram o pagamento integral do 13º…

36 minutos ago

Mutirão recolhe três caminhões de inservíveis de distritos de Tupã

Ação do “Tupã Mais Limpa” passou por Universo e Parnaso e segue neste sábado em…

36 minutos ago

Dani Alonso é homenageada ‘Personalidade que faz a Diferença’

Momento de reconhecimento da deputada (Foto: Divulgação) A Fundação Brasileira de Marketing contemplou a deputada…

36 minutos ago

Justiça publica sentença contra acusados por crimes na ‘guerra do tráfico’ em 2011

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) publicou a sentença do júri…

36 minutos ago

This website uses cookies.