A amazônia é o jardim do seu quintal, Elon?
A solução para o nosso povo eu vou dar. Negócio bom assim ninguém nunca viu. Está tudo pronto aqui é só vim pegar. A solução é alugar o Brasil. Nós não vamos pagar nada. É tudo free. Está na hora agora, é free. Vamos embora dar o lugar para os gringos “entrar”, esse imóvel “tá” pra alugar. Os estrangeiros eu sei que eles vão gostar. Tem o Atlântico, tem vista para o mar. A Amazônia é o jardim do quintal. E o dólar deles paga o nosso mingau.
“Aluga-se” é uma canção do poeta baiano Raul Seixas, que levou às últimas consequências aquela ideia modernista de Oswald de Andrade, chamada de antropofágica, resumida pela prática de pegar as influências estéticas de fora, importá-las, amalgamá-las em uma síntese brasileira nova e daí sim compor algo de cultural genuinamente brasileiro. Em vez de só copiar, nosso Raul criou, ideologicamente condicionado por uma centelha que vinha desde os modernistas, um rock de timbre mais nordestino falando sobre coisas da nossa realidade social e voilá, fez um clássico que está no inconsciente coletivo brasileiro.
“A solução é alugar o Brasil” é de uma ironia inextinguível, porque não é de se impressionar que ainda semana passada teve gringo vindo para cá desavergonhadamente oferecer investimentos ou formas escamoteadas de monitoramento e controle do nosso território, na maior e mais valiosa área do Brasil que é o nosso trecho de Amazônia, e com o aval de líderes de Estado. Não fosse esta uma notícia ruim e excêntrica o suficiente, a coisa piora quando a nossa própria população olha com ternura para o Elon Musk, achando nele uma espécie de Messias salvador de uma pátria tupiniquim abandonada. Que canoa furada entramos…
Se na Amazônia não tivesse nióbio e outros minerais metálicos, se não tivesse enormes reservas de petróleo em jazidas sedimentares, bem como se não tivesse a maior reserva superficial e subsuperficial de água doce e potável do planeta, é óbvio e ululante deduzir que empresário nenhum se interessaria por ela. Dó é um sentimento ruim, tão ruim quanto o medo. Todavia, é de se ter muita dó de quem cai tão facinho na ilusão que quaisquer bilionários querem o bem de um país estrangeiro, e na mesma proporção dá para ficar bastante temeroso em relação ao retrocesso que esta falta de patriotismo causa para o Brasil. Deus nos proteja.
Já disse em outras colunas e vou repetir. Para falar de coisas sérias é muito bom que nos valemos de pessoas sérias, que dedicaram suas vidas a entender os assuntos sérios. Amazônia é uma coisa muito séria, e no Brasil a maior autoridade nos estudos sobre a Amazônia tem nome e sobrenome, Professora Doutora Bertha Becker (1930-2013). A tese central dela ganhou relevo na academia brasileira a partir da década de 1980 na obra “Geopolítica da Amazônia”, de que a Amazônia precisa de uma modernização promovida pelo Estado brasileiro, ao passo que dedicar nesta gigantesca área de milhões de quilômetros quadrados apenas projetos locais e familiares é, na sua visão, um desperdício político e econômico para o país. Afinal, a Amazônia é literalmente meio Brasil, muito embora a maioria do senso comum não saiba disto e imagine a floresta como um grande vazio demográfico com algumas aldeias apinhadas que levam uma vida tribal fácil. Ledo engano.
Bertha Becker dizia sempre “eu não sou nem ambientalista, nem antiambientalista”, provocando e propondo um certo amadurecimento intelectual para transcender o maniqueísmo que tomou de conta o debate sobre a Amazônia, especialmente após a redemocratização do país, de que ela só vale se for mantida enquanto espaço florestal imaculado ou como uma espécie de capital natural perpétuo. Pois, sobretudo antes da virada para o século XXI, ou para o terceiro milênio depois de Cristo, a consciência planetária voltou-se para a natureza de maneira sem precedentes ao descobrirmos o derretimento das calotas polares, os buracos na camada de ozônio, a extinção de grupos de fauna e flora, tudo isso corroborando para que as poucas reservas ambientais do planeta fossem enfim mantidas preservadas.
O mais curioso apenas é que, se olharmos para estas reservas pelo prisma do desenvolvimento econômico e social das nações, a gente percebe que grosso modo o resto do mundo nativo e selvagem que ainda há está todo ele concentrado nos países subdesenvolvidos. Os países que compõem o rol dos líderes econômicos e de desenvolvimento social já destruíram seus recursos desde a segunda revolução industrial há um século atrás. Quer dizer, a gente precisa manter a Amazônia para quem? É para os países ricos terem uma justificativa moral de que agora, depois de destruírem os seus territórios, deve-se manter as florestas tropicais dos outros países intactas porque é uma demanda do planeta?
O que falta, portanto, para gerir nosso território na Amazônia, são doses muito bem servidas de soberania do Estado Nacional capaz de lidar com este espaço da maior importância estratégica. Irromper esta bravata ambientalista de que a única coisa que interessa é a preservação, pois, não olhar para a floresta enquanto economia estratégica nacional está para sangrá-la aos poucos pela exportação dos recursos e avanço das monoculturas de grãos que comem o bioma pelas bordas do Mato Grosso e do Pará, especialmente.
Numa entrevista para a Revista Pesquisa da Fundação de Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Bertha foi perguntada como conciliar preservação e economia na Amazônia. Brilhantemente, como era de hábito, ela disse que é necessária “(…) uma revolução científico-tecnológica que utilize a biodiversidade em todos os seus níveis, desde os extratos e óleos até os fármacos, que é a tecnologia mais sofisticada, que requer grandes investimentos. Já existem algumas experiências que procuram agregar valores à biodiversidade: em Manaus, por exemplo, a Natura e a Croda, uma multinacional inglesa que já está explorando óleos. Temos de pensar na agregação de valor no âmago da floresta, com os ribeirinhos, com inclusão social. Assim haveria cadeias produtivas se formando desde as populações tradicionais até os centros de biotecnologia, onde é possível fazer extratos, xarope e fármacos. A pesca, uma parte da pesca é biodiversidade. Pode-se industrializar a pesca, é uma das maiores possibilidades da Amazônia e ninguém usa. Está sendo depredada. A biodiversidade é o que permite gerar riqueza, fármaco dá riqueza, xarope e cosmético também. E o que pode gerar riqueza com inclusão social e sem depredar o ambiente? A tecnologia. É a única forma.”
O que nos falta é abrir um pouco os olhos e descortinar estas falcatruas internacionais que vêm disfarçadas de eufemismos contemporâneos com startup, networking ou business… A Amazônia é nossa e de nossa responsabilidade, monitorada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que há décadas faz uma nacional e bem embasada avaliação do complexo bioma e suas áreas camponesas, urbanas e indígenas.
E como a cereja do bolo sempre fica para o final, é bom lembrar que a tal da Starlink, empresa do senhor Elon Musk supostamente interessada em gerar grande benefício informacional para o Brasil, não pôde lançar alguns milhares de satélites para monitorar o território dos EUA, pois a Nasa – sigla em inglês de National Aeronautics and Space Administration – protestou e a solicitação para a Comissão Federal de Telecomunicações, nos EUA, fez água. Isto é, se os EUA e suas agências de comunicação veem a Starlink com reservas, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) aprovará um projeto de monitoramento no Brasil que a Nasa julgou passível de investigação?
Cada um tem o ídolo que merece.