O mendigo
O que eu vou escrever aqui é problemático. Por vários motivos. Do ponto de vista político, econômico, social, humano, psicanalítico. Poeticamente falando, a história que segue tem sua beleza, humor e tragédia. Que a leitora se prepare para lágrimas e sorrisos, risadas acompanhadas de um coração partido.
Semana passada conheci um mendigo. Na seguinte situação: lá estava eu, em frente ao Berlin durante uma madrugada, quando um “morador de rua” se faz prevalecer de uma forma ligeiramente desagradável, tão ligeira a forma que nem lembro mais o motivo do desagrado. Eu, que havia aprendido um truque deplorável com um provável “pick-up artist” que gosta de se passar por médico por aí, o executei de forma magistral. “Eu te dou quatro cigarros mas você tem que sumir do rolê, não posso te ver mais,” disse eu ao barbudo sem camisa, que respondeu prontamente: “feito.” E assim ele, cumprindo sua parte da promessa, desceu a rua do Berlin e se perdeu na escuridão.
Uns vinte minutos depois, eu, que nem lembrava mais do ocorrido, desci a mesma rua, na verdade fugindo de um psicopata do sexo masculino que parecia ter me confundido com seu futuro amante ou obsessão. Vendo um grupo de meninas na esquina, eis que encontro meu oásis na noite, meu refúgio heterossexual. E quem ali estava a prosear com as garotas? Sim, o nosso mendigo. Eu lhe dei uma bronca, brincando, é claro: “você de novo? era pra você sumir!” E ele respondeu, cheio de orgulho nos olhos: “Uai, cê tá me seguindo!”
Uma semana depois, estava eu comprando cigarro em uma adega não muito longe do mesmo Berlin, quando o nosso amigo sem nome e sem endereço entra no estabelecimento, gritando, ao me reconhecer: “você!” Eu sorri, dizendo: “agora quem me seguiu foi você,” no que ele respondeu: “sim, mas cê tava me devendo uma seguida.”
Rimos juntos, e aproveitei pra pedir uma foto com ele – a mesma foto acima estampada – pois já havia decidido escrever uma crônica sobre a situação por ele acarretada. E o que estava cômico me trouxe lágrimas aos olhos. Quando pedi a autorização dele para publicar a coluna com a foto dele, ele mal entendeu meu pedido, mas respondeu, lacrimejando: “você quer ver foto da minha família? Tenho duas filhas lindas.”
Eu, que também tenho duas princesas, disse “é claro,” com um coração apertado, me sentindo sensível e insensível ao mesmo tempo, como alguém que se sensibiliza diante da tragédia alheia, mas a explora cruelmente ao relatá-la aqui. O mendigo simplesmente me ‘derrubou’, e eu quis saber o nome dele, sentindo a culpa de estar lhe usando e abusando como mero objeto literário. “Como você chama?” eu perguntei pela quinta vez, olhando firme nos olhos dele. “La-la-la,” ele respondeu.
Seguimos cada um seu caminho, ele sabe-se lá pra onde, eu de volta ao Berlin, obviamente. E lá chegando, conheci um grupo de amigos simpaticíssimos pros quais relatei o que acabo de relatar aqui, acrescentando algo a mais sobre a etimologia da palavra “mendigo,” que remete ao Latim “menda,” que significa falha ou falta, defeito, imperfeição, erro, ausência, carência – pense nas palavras “remendar” ou “emendar” em português, por exemplo, que ainda carregam esse sentido de reparar uma falha ou consertar um defeito.
Nisso lembrei de Lacan e de sua teoria psicanalítica ao redor da palavra francesa “manque,” a “falta” que, segundo Lacan, esvazia a essência do homem, mas constitui a origem de todo desejo, uma incompletude que nos atravessa de cabo a rabo independentemente de nossa condição monetária, que nos torna todos, de certa forma, mendigos.
Uma alma que ali estava me interrompeu, problematizando a minha divagação etimológico-psicanalítica, dizendo, sem ódio nos olhos, que eu estava a romantizar a pobreza, que esse gesto intelectual só mascarava uma realidade que ninguém quer ver, ou, pior ainda, explorava a pobreza alheia numa masturbação filosófica destinada a amenizar a discrepância entre nós e nosso amigo mendigo, nos rebaixando à condição dele para talvez nos sentirmos menos culpados, menos cúmplices com o capitalismo que nos assola. E como dizer que ele está errado? Mas como negar que algo aqui escapa da interpretação marxista?
Vejo esse mendigo em todo lugar. Sempre nos cumprimentamos e outro dia ele me pediu um abraço. Ao abraçá-lo senti a mesma coisa que sinto agora, uma impossibilidade de simplesmente desfrutar o momento sem me sentir um hipócrita burguês completo, um filho da puta se fazendo de bonzinho, humanitário, caridoso, se tornando mais rico ainda em cima das costas do pobre, comprando seu lugar no céu vergonhosamente.
Como Marx acerta em criticar a caridade cristã! Mas como negar um abraço? E como negar que, no meio dessa confusão toda, eu e o mendigo – que eu nem sei se de fato mendigo é – nos tornamos, eu ouso dizer, amigos?
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Rodrigo Bueno Therezo escreve crônicas para o Marília Notícia quinzenalmente. É pianista clássico formado pela DePaul University School of Music, com doutorados em Literatura, Psicanálise e Filosofia pela Universidade de Freiburg, Alemanha. Atualmente cursa medicina na Universidade de Marília e está terminando seu segundo livro intitulado “Fontes de Prazer: Freud, Derrida, Pessoa.”