O azul dos olhos dela
Hoje eu queria falar de um poema, ou melhor, de um verso só, somente um verso que li por aí, ou melhor, que ouvi e vi sendo dito na inimitável voz de Antonio Fagundes. Trata-se de um singelo arranjo de palavras, ou melhor, de um rearranjo tímido, inocente, discreto, mas que se prova nada menos que eruptivo, transformador, cataclísmico.
“Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu.”
Assim escreveu Mario Quintana no poema “Meu primeiro amor,” publicado na coleção Antologia Poética em 1981. O poema, pra quem não conhece, é belíssimo e retrata o amor entre duas crianças de cinco anos, sentadas numa “tosca pedra” num terreno baldio entre suas casas, trocando confidências amorosas enquanto adultos que ali passavam riam-se da cena infantil, como que a caçoar de algo que eles, segundo o genial Quintana, passariam a vida inteira buscando. O poeta, no estilo Robert Schumann apaixonado por sua futura noiva e pianista Clara — recomendo ao leitor a escuta de “Cenas Infantis” com a pianista argentina Martha Argerich — relembra esse seu primeiro amor, através dos olhos azuis de sua amada, um “azul imenso” que ele não encontrava em ninguém mais, nem nos olhos “do cachorro e do gato da casa.” Tão azul era o olho dela que o poeta, ou melhor, a criança que o poeta era, passa a enxergar tudo azul colorido, mais especificamente o céu que mais azul ficou:
“Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu.”
Um poeta medíocre diria: “os olhos dela eram azuis COMO o céu,” ou “os olhos dela eram azul da cor do céu.” Aqui não. Quintana inverte a metáfora e faz o céu receber sua cor a partir dos olhos dela, como se os olhos dela já fossem o próprio céu, e como se o céu em si recebesse sua cor através deste primeiro céu dos olhos dela que pinta tudo de azul, inclusive o céu mais alto possível.
Desde Aristoteles, o papel filosófico da metáfora, tanto em textos literários quanto filosóficos, é elucidar o desconhecido através do familiar. Parte-se do pressuposto que já conhecemos a imagem sensorial que a metáfora evoca — por exemplo, o “céu” em “os olhos dela eram azuis como o céu” — e a partir daí começamos a intimar com mais facilidade o conceito ou ideia mais abstrata que o poeta ou filósofo tenta transmitir. Mas Quintana não diz isso. Tudo está aqui literalmente de ponta cabeça. Não se sabe mais de antemão como o céu é; o céu não é mais aquilo que já conhecemos, o familiar que ilumina o desconhecido. O que era pra ser aqui familiar — o ponto de partida da metáfora ocidental — ganha seu significado a posteriori através do desconhecido, o “azul imenso” dos olhos dela que desmonta, desconstrói como diria Jacques Derrida, a oposição binária mais nevrálgica do Ocidente, i.e., a dualidade entre sensação e abstração, o físico e o intelectual, o corpo e a mente, a terra e o céu, finalmente. Aqui o céu desceu pra terra e a terra subiu pro céu, uma montanha russa com looping que faz com que o “azul imenso” dos olhos dela inverta nossa maneira metafísica e Platônica de enxergar o mundo, deixando o azul aqui brilhar por si só, incomparavelmente belo, insubstituível, irresistível, irradiante, iluminante, ímpar.
Não é o céu que empresta sua cor aos olhos dela, é ao contrário! São os olhos dela, aquele “azul imenso” e tão profundo, que jorram azul pro céu, um feixe de luz de baixo pra cima, em todas as direções, com uma potência capaz de azular todo o mundo da criança que o poeta era.
E não é exatamente assim que nos sentimos quando amamos? O mundo não fica mais colorido, mais bonito, mais brilhante? Não passamos também a enxergar tudo meio distorcido, as vezes ofuscado ou ate desfocado? Não ficamos meio cegos, caolhos, míopes ou astigmáticos?
Somos tão capazes de inventar um amor. Porque amar é gostoso, eletrificante, tão diferente do tédio frio da rotina. É preciso ter cuidado, porque o amor inventado uma hora desmorona, e mesmo assim há de se fazer o luto do amor perdido, da fantasia que morreu.
Uma vez, há tempos, vivi um “amor” assim. Eu inventei uma princesa, idealizei uma pessoa tão bela por dentro, tão feminina, doce, tão sensível ao belo e bonito, tão interessada em arte e cinema, música e literatura. Que se dizia uma “senhora” por dentro mas que, em um único gesto, revelou-se vazia, superficial, rasa, comum.
Falei pra ela justamente sobre o verso acima de Quintana. Disse que era o verso mais bonito que já tinha lido. E a reação dela? Nada, zero resposta. Tudo bem que nem olho azul ela tem, mas “quand même?” como diriam os franceses. Como a minha amada pode ser tão fria, tão cinza perante ao azul imenso, intenso e quente do poema? Se limitou a dizer algo protocolar, estereotípico e comum sobre Quintana, algo como “clássico dos clássicos” ou coisa assim. E ali se desfaleceu o castelo, o cristal do amor se quebrou e eu percebi a mentira que eu havia inventado. Como diria Bruno e Marrone, “eu pensei que era uma joia rara, era bijuteria.”
E você, quando foi a última vez que você testou seu amor? Será que ele é de verdade? Procure algo que te toca e compartilhe com quem você ama ou acha amar. Observe. Observe como você se sentirá ao observar a reação dele ou dela. Observe se o que é importante pra você é realmente importante para outra pessoa. Veja se a máscara não cai. E se cair, tudo bem. Sinal de que não era pra ser, sinal para ainda seguirmos em frente, buscando algo que as crianças de Quintana já tinham encontrado em cima daquela “tosca pedra” aos 5 anos de idade.
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Rodrigo Bueno Therezo escreve crônicas para o Marília Notícia quinzenalmente. É pianista clássico formado pela DePaul University School of Music, com doutorados em Literatura, Psicanálise e Filosofia pela Universidade de Freiburg, Alemanha. Atualmente cursa medicina na Universidade de Marília e está terminando seu segundo livro intitulado “Fontes de Prazer: Freud, Derrida, Pessoa.”